Mesmo
que a alma tenha de sujeitar-se, naquela
passagem para o Céu, à purificação das últimas escórias, mediante o
Purgatório, ela já está cheia de luz, de
certeza, de alegria, pois sabe que pertence
para sempre ao seu Deus". (Beato João
Paulo II)
As
almas nesse estado "purificam-se", diz São Francisco de Sales, "voluntariamente,
amorosamente, porque assim Deus o
quer" e " porque estão certas de sua salvação, com uma esperança
inigualável".
Sabemos que a Igreja Católica é
una. É o que rezamos no Credo. Entretanto, os membros da Igreja não estão todos
aqui, entre nós, mas em lugares diversos, como diz o Concílio Vaticano II.
Alguns "peregrinam sobre a terra, outros, passada esta vida, são
purificados, outros, finalmente, são glorificados" (Lumen Gentium, 49).
Entre a terra e o Céu não é
raro acontecer, no itinerário da alma fiel, um estágio intermediário de
purificação. Segundo nos ensina o Catecismo da Igreja Católica, por aí passam
"os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão perfeitamente
purificados".
Por isso "passam, após sua
morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar
na alegria do Céu" (nº 1030). Esse estado de purificação nada tem a ver
com o castigo dos condenados ao Inferno, pois as almas do Purgatório têm a
certeza de haver conquistado o Céu, mesmo que sua entrada ali tenha sido adiada
por causa de seus resíduos de pecado.
A primeira epístola aos
Coríntios faz referência ao exame a que serão submetidos os cristãos, os quais,
havendo recebido a Fé, devem continuar em si a obra de sua santificação. Cada
um será examinado no respeitante ao grau de perfeição que atingiu: "Se
alguém edifica sobre este fundamento, com ouro, ou com prata, ou com pedras
preciosas, com madeira, ou com feno, ou com palha, a obra de cada um aparecerá.
O dia (do julgamento)
demonstrá- lo-á. Será descoberto pelo fogo; o fogo provará o que vale o
trabalho de cada um. Se a construção resistir, o construtor receberá a
recompensa. Se pegar fogo, arcará com os danos. Ele será salvo, porém passando
de alguma maneira através do fogo" (1Cor 3, 12-15). "Ele será
salvo", diz o Apóstolo, excluindo o fogo do Inferno, no qual ninguém pode
ser salvo, e se referindo ao fogo temporário do Purgatório.
Comentando este e outros
trechos da Sagrada Escritura, a Tradição da Igreja nos fala do fogo destinado a
limpar a alma, como explica São Gregório Magno em seus Diálogos: "Com
relação a certas faltas leves, é necessário crer que, antes do Juízo, existe um
fogo purificador, como afirma Aquele que é a Verdade, ao dizer que, se alguém
pronunciou uma blasfêmia contra o Espírito Santo, essa pessoa não será perdoada
nem neste século nem no futuro (Mt 12, 31). Por essa frase, podemos entender
que algumas faltas podem ser perdoadas neste século, mas outras no século
futuro".
Por que
existe o Purgatório?
Será Deus tão rigoroso a ponto
de não tolerar nem mesmo a menor imperfeição, limpando-a com penas severas?
Esta pergunta facilmente pode nos vir à mente.
Em primeiro lugar, devemos nos
lembrar desta verdade: depois de nossa morte, não seremos julgados segundo
nossos próprios critérios, pois "o que o homem vê não é o que importa: o
homem vê a face, mas o Senhor olha o coração" (1Sm 16, 7). Estaremos
diante de um Juiz sumamente santo e perfeito, e em seu Reino "não entrará
nada de profano" (Ap 21, 27). Com efeito, na presença de Deus, de sua Luz
puríssima, a alma percebe em si mesma qualquer pequeno defeito, julgando- se,
ela mesma, indigna de tal majestade e grandeza. Santa Catarina de Gênova,
grande mística do século XV, deixou uma obra muito profunda sobre a realidade
do Purgatório e do Inferno.
Explica ela o seguinte:
"Digo mais: no concernente a Deus, vejo que o Paraíso não tem portas e ali
pode entrar quem quiser, pois Deus é todo misericórdia e seus braços estão
sempre abertos para nos receber na glória; mas a divina Essência é tão pura -
infinitamente mais pura do que podemos imaginar - que a alma, vendo nela mesma
a menor das imperfeições, prefere atirar-se em mil infernos a aparecer suja na
presença da divina Majestade. Sabendo então que o Purgatório está criado para a
purificar, ele mesma se joga nele e encontra ali grande misericórdia: a
destruição de suas faltas".
Essas manchas, a serem
purificadas na outra vida, o que são? São os restos de apego exagerado às
criaturas, ou seja, as imperfeições, e os pecados veniais, bem como a dívida
temporal dos pecados mortais já perdoados no Sacramento da Reconciliação. Tudo
isso diminui na alma o amor de Deus.
Por causa dessas afeições
desregradas se estabelece um estado de desordem em nosso interior, afastando-
nos do Mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas. Essa é a causa pela
qual, antes de permitir a uma alma subir até a glória celestial, "a
justiça de Deus exige uma pena proporcional que restabeleça a ordem
perturbada" (Suma Teológica, Supl. q. 71, a. 1) E a alma se sujeita ao
castigo do Purgatório com alegria, em plena conformidade com a vontade do
Senhor.
Seu único desejo é ver-se
limpa, para poder configurar-se com Cristo. As almas nesse estado
"purificam-se", diz São Francisco de Sales, "voluntariamente,
amorosamente, porque assim Deus o quer" e "porque estão certas de sua
salvação, com uma esperança inigualável".
A pena
do Purgatório
As dores infligidas nesse local
de purificação são "tão intensas que a menor pena do Purgatório ultrapassa
a maior desta vida" (Suma Teológica, Supl., q. 71, a. 2). Mesmo assim,
pondera São Francisco de Sales, "o Purgatório é um feliz estado, mais
desejável que temível, pois as chamas nele existentes são chamas de amor".
Mas como entender que esse
terrível sofrimento seja transpassado de amor? Na verdade, o maior tormento das
almas do Purgatório - a "pena de dano" - é causado precisamente pelo
amor. Essa pena consiste no adiamento da visão de Deus. Criado para amar e ser
amado, o homem, ao abandonar esta terra, descobre a inefável beleza da Luz
Divina e deseja correr para Ela com todas as suas forças, como o cervo sedento
corre em direção à fonte das águas. Contudo, vendo em si o defeito do pecado,
fica privado temporariamente daquela presença tão pura. Afastada, assim,
d'Aquele que é a suprema e única felicidade, a alma sente um padecimento
incalculável.
Para nós, que ainda somos
peregrinos neste vale de lágrimas, é difícil entender a imensidade dessa dor.
Vivemos sem ver a Deus, embora n'Ele creiamos. Somos como cegos de nascimento,
pois nunca vimos o Sol de Justiça, que é Deus; embora sintamos seu calor, não
podemos fazer idéia de seu resplendor e grandeza.
Entretanto, as almas benditas
do Purgatório, logo após terem abandonado o corpo inerte, discerniram a
inefável e puríssima beleza de Deus, mas não podem possuí-la imediatamente.
Santa Catarina de Gênova usa uma expressiva metáfora para explicar essa dor:
"Suponhamos que, no mundo inteiro, exista apenas um pão para matar a fome
de todas as criaturas, e que basta olhar para esse pão para ficarem
satisfeitas. Por sua natureza, o homem saudável tem o instinto de se alimentar.
Imaginemos que ele seja capaz
de se abster dos alimentos sem morrer, sem perder a força e a saúde, mas
aumentando cada vez mais a fome. Ora, sabendo que só aquele pão pode saciá-lo e
que não poderá matar sua fome enquanto não o alcançar, ele sofre sacrifícios
insuportáveis, os quais serão tanto maiores quanto mais longe ele estiver do
pão".
Apesar de tudo, as almas do
Purgatório têm a certeza de que um dia poderão se saciar de modo pleno com esse
Pão da Vida, que é Jesus, nosso amor. E por isso seu sofrimento é em tudo
diferente do tormento dos condenados ao Inferno, os quais nunca poderão se
aproximar da Mesa do Reino dos Céus. Esperança e desespero, eis a diferença
fundamental entre esses dois lugares.
Disposição
das almas no Purgatório
Por isso, há nas almas do
Purgatório um matiz de alegria no meio da dor. De forma brilhante, explica- o o
Papa João Paulo II, na alocução de 3 de julho de 1991: "Mesmo que a alma
tenha de sujeitar-se, naquela passagem para o Céu, à purificação das últimas
escórias, mediante o Purgatório, ela já está cheia de luz, de certeza, de
alegria, pois sabe que pertence para sempre ao seu Deus".
E Santa Catarina de Gênova
afirma: "Estou certa de que em nenhum outro lugar, excetuando o Céu, o
espírito pode achar uma paz semelhante à das almas do Purgatório". Isso
ocorre porque a alma se fixa na disposição em que se encontra na hora da morte,
ou seja, contra ou a favor de Deus, pois a liberdade humana termina com a
morte. E tendo falecido na amizade de Deus, a alma do Purgatório se adapta com
docilidade à sua santa vontade. Daí conservar a paz em meio a terríveis
sofrimentos.
Dos lábios do suavíssimo São
Francisco de Sales ouvimos dizer que "entre o último suspiro e a
eternidade, há um abismo de misericórdia". Todos acham melhor fazer um
esforço para evitá-lo. Outros, porém, sem se oporem aos anteriores, enfrentam o
problema com uma ousada confiança no amor misericordioso do Senhor.
Santa Teresa de Jesus, por
exemplo, diz com veemência: "Esforcemo- nos, fazendo penitência nesta
vida. Como será suave a morte de quem a tiver feito por todos os seus pecados,
e assim não precisar ir para o Purgatório!" Já sua discípula, Santa
Teresinha do Menino Jesus, formula de modo surpreendente sua atitude, se nele
caísse: "Se eu for para o Purgatório, ficarei muito contente; farei como
os três hebreus na fornalha, caminharei entre as chamas cantando o cântico do
amor".
Uma atitude não contradiz a
outra, mas ambas se completam, e, mesmo se tivermos de passar por esse lugar
tão doloroso, tenhamos uma confiança sem limites na bondade divina.
De qualquer modo, a Santa
Igreja coloca maternalmente à nossa disposição as indulgências, para nos poupar
das penas do Purgatório. Mas este tema pode ficar para outro artigo.
Ajudemos
as almas benditas
Não devemos pensar só no nosso
destino pessoal, mas também nos perguntarmos como podemos ajudar aquelas almas
que já estão à espera da libertação. Elas não podem fazer nada por si, pois
estão impossibilitadas de alcançar méritos, e dependem de nós. Interceder por
elas é uma belíssima e valiosa obra de misericórdia: de certo modo, não há
ninguém mais carente do que elas. O costume de rezar pelas almas dos falecidos
vem do Antigo Testamento.
Também diversos Padres da
Igreja promoveram essa prática, como São Cirilo de Jerusalém, São Gregório de
Nissa, Santo Ambrósio e Santo Agostinho. No século XIII, o Concílio de Lyon
ensinava: "As almas são beneficiadas pelos sufrágios dos fiéis vivos, quer
dizer, o sacrifício da Missa, as orações, esmolas e outras obras de piedade, as
quais, segundo as leis da Igreja, os fiéis estão acostumados a oferecer uns
pelos outros".
Como é bela a devoção às
benditas almas do Purgatório! É agradável a Deus e nos beneficia também,
levando-nos à verdadeira dimensão cristã da existência, fazendo-nos viver em
contato e comunhão com o sobrenatural, e com o futuro, no sentido mais pleno da
palavra. Como essas pobres almas nos ficarão agradecidas ao receber nosso
auxílio! Poderão ser nossos parentes, ou até mesmo nossos pais. Poderá ser
alguém que não conhecemos, e que nos dará uma afetuosa acolhida na eternidade.
No Céu, e enquanto ainda estiverem no Purgatório, elas rezarão por nós, com
todo o empenho, pois Deus lhes dá essa possibilidade.
Concluindo, gostaria de fazer
ao prezado leitor uma proposta: reze por essas almas necessitadas, ofereça-
lhes Missas, dê esmolas por elas, faça sacrifícios e consiga que outras pessoas
se tornem devotas fervorosas das almas benditas. Sabe quem será o maior
beneficiado? Você mesmo!
Fonte: Gaudium Press
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