Introdução
O transplante de órgãos entre
humanos caracteriza-se como a retirada de um órgão da pessoa doadora quer
“viva” quer “cadáver” para posterior enxerto no organismo humano (receptor). A
transplantação de órgãos visa essencialmente a socorrer pessoas com doenças
terminais que afetam órgãos vitais (coração, rins, pâncreas,fígado etc.); é
usada também para melhorar a qualidade de vida do paciente (transplante de
ossos) ou mesmo para estética (transplante de pele).
O transplante de órgãos tem
características diversas perante outras questões medicas, ou seja, não está
restrito, em sentido clínico, à relação paciente-médico, depende ainda de um
terceiro fator externo, que é o doador de órgãos. Embora transplantes sejam
baseados em técnicas que são comuns na medicina, não podem ser realizados sem
doações de órgãos.
Existem diferentes
classificações de tipos de transplantes. Para Lamb, “há quatro tipos diferentes
de transplantes que são significativos para se avaliar uma rejeição potencial.
Primeiro, há os autransplantes (transplante autoplástico, auto-enxerto,
transplante homólogo), que são transplantes de um órgão ou tecido realizados no
mesmo indivíduo: isso acontece quando transferem pele, osso, músculo, ou medula
óssea, de uma parte do organismo para outra. Segundo, existem os
homotransplantes, de um indivíduo para o outro da mesma espécie. Em terceiro
lugar, os heterotransplantes (transplante heteroplástico, heteroplásticos,
heteroenxerto, enxerto heterólogo), entre indivíduos de diferentes espécies,
habitualmente de animais para seres humanos, que também são conhecidos como
xenotransplantes. E, por último, os isotransplantes entre indivíduos
geneticamente idênticos, caso de gêmeos idênticos.
Doutrina
da Igreja Católica
No decorrer da evolução dos
transplantes de órgãos, a Igreja Católica sempre os acompanhou como um gesto de
doação e grandeza. O Papa Pio XII foi quem ajudou a superar as dificuldades
iniciais de alguns moralistas católicos com relação aos transplantes de órgãos
procedentes de doador vivo. “O Papa aceitou a aplicação do princípio da
totalidade, admitindo a subordinação da ordem somática à ‘finalidade espiritual
da própria pessoa’”.
O Papa João Paulo II, em
discurso aos participantes do XVIII Congresso Internacional sobre os
Transplantes, em agosto de 2000, ressaltou a grandeza do gesto de amor e
solidariedade que se expressa de forma concreta pela doação de órgãos. O Papa
cita a Encíclica Evangelium vitae:
“merece particular apreço a doação de órgãos feita segundo formas eticamente
aceitáveis, para oferecer possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por
vezes já sem esperança”.
Qualquer intervenção de
transplante de órgãos, diz o papa, tem geralmente origem numa decisão de grande
valor ético: “A decisão de oferecer, sem recompensa, uma parte do próprio
corpo, em benefício da saúde e do bem-estar de outra pessoa”. Nisso consiste a
nobreza do gesto que se configura como um autêntico ato de amor e elimina toda
a possibilidade de comercialização de órgãos.
Mesmo considerando o valor da
doação de órgãos, para melhor ser avaliado o transplante a partir de
considerações morais é preciso conhecer a origem do órgão, se é doador vivo ou
cadáver. É o que afirma Vidal: “é mister distinguir, antes de mais nada, a
doação de um tecido ou de um órgão por parte de uma ‘pessoa viva’ com vistas ao
transplante e a extração de alguma parte do corpo de um cadáver”.
Autotransplantes
Os autotransplantes, ou seja,
transplantes realizados dentro do mesmo organismo, não apresentam qualquer
problema moral, desde que não seja arbitrária a decisão dos médicos, mas que
tenha um sentido humano. Há necessidade também de avaliação dos riscos que essa
técnica apresenta se forem compensados pelas vantagens.
Transplante
entre pessoas vivas
Quando se trata de transplantes
de pessoas vivas, ou seja, com doação voluntária de um órgão por parte de uma
pessoa viva que se priva dele para ajudar a outra pessoa, Vidal afirma que a
avaliação moral está fundamentada em dois princípios que se integram
mutuamente: o primeiro é o principio da indisponibilidade da vida própria e da
própria integridade funcional. Este princípio preserva a vida da pessoa
doadora. Para o autor, se a ciência protege a saúde do doador, não existe
motivo de iliceidade. O corpo do doador mantém suas funções fundamentais, ainda
que doando uma parte importante dele; o segundo é a solidariedade, em virtude
da qual cada um é chamado a da algo de si a quem disto necessita; é um amar-se
mútuo até o sacrifício de si mesmo. Por isso, mais do que falar de liceidade
neste tipo de transplante, poder-se-ia falar com maior verdade da virtude da
caridade.
Ao manifestar sua posição se é
moralmente lícita a transplantação de órgão de pessoa viva para outra pessoa
viva, Häring afirma: “Em minha opinião, entretanto, a pessoa que , por motivos
graves, sacrifica um órgão que não seja para ela de importância vital, em favor
do próximo, demonstra com isso um sentimento não apenas subjetivamente digno de
respeito, mas que, conforme o caso, pode ser até objetivamente justificável e
digno de louvor, como o sacrifício inteiramente
voluntário de Cristo. Ainda para o autor “a questão fundamental de saber
se pode ser moralmente lícita e até digna de aplauso a transplantação de órgão
de pessoa viva para outra pessoa viva constitui uma pedra de toque da extensão
do nosso princípio fundamental referente ao dever que tem o cristão de pôr sua
saúde e sua vida a serviço da caridade”.
Para Orduña, “a licitude desses
transplantes dependerá do doador, um consentimento com conhecimento de causa,
respeitando a sua autonomia e excluindo imposições alheias ou decisões pessoais
irresponsáveis; exame dos eventuais prejuízos derivados da extirpação de um
órgão; por parte do receptor, é preciso avaliar os riscos e as vantagens tanto
no caso de não se realizar o transplante como no caso de fazê-lo”.
Transplantes
a partir de um cadáver
Quando se trata de transplantes
de cadáver, não existe nenhuma lei divina, moral que proíba tal intervenção. “A
extração de um órgão do corpo de um sujeito morto não lesa nenhum direito subjetivo
propriamente dito, ou seja, o cadáver não é mais sujeito de direito, uma vez
diagnosticada a morte, a discussão está no que fazer quando não houver nenhuma
declaração por parte da pessoa falecida”.
Neste tipo de transplante, o
grande dilema médico e ético é o benefício para o receptor ao receber o órgão
em comparação aos riscos.
O dilema moral é avaliado por
Orduña: “No momento de julgar a conveniência moral de um transplante a partir
de um cadáver, o aspecto fundamental para o qual se deve atentar deveria ser a
influência desse transplante sobre o bem-estar do doente, comparando-se a
situação atual com as previsões no caso de realizar ou não o transplante”. Este
tipo de transplante apresenta como dilema moral estabelecer o momento da morte
da pessoa; quanto a isso, a Igreja confia à medicina que, dentro dos princípios
éticos, desenvolva tecnologias capazes de determinar com maior precisão
possível a morte cerebral da pessoa; e consentimento da pessoa ou da família.
Lei
brasileira dos transplantes
Na tentativa de suprir a
escassez de órgãos para o transplante, várias leis ao longo da história foram
elaboradas no Brasil voltadas em especial para a regulamentação da doação de
cadáveres. Estas leis levantaram vários debates jurídicos, éticos e teológicos.
O Congresso Nacional sancionou a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que
adotou o conceito da “doação presumida”, disciplinando que todos os brasileiros
são doadores, “salvo manifestação da vontade da pessoa doadora em contrário.”
Na doação presumida, o que se considera é a vontade da pessoa doadora e não da
família.
A doação presumida foi bastante
criticada na forma como foi estabelecida. M. Anjos ressalta que isto era
extrapolação, ou seja, a concepção da lei extrapola o limite da ética, é uma
imposição, pois, a maioria da população brasileira não possui instrução
jurídica adequada, existe a falta de informação que comprometeria a
manifestação livre e esclarecida do doador.
O artigo 4º da Lei de
Transplantes foi alterado pela Medida Provisória nº 2.083/2001, que passa para
a família o direito de decidir a doação dos órgãos da pessoa em estado de morte
cerebral. Nesse caso, a autonomia da pessoa doadora está sendo desrespeitada,
na medida em que a lei considera a vontade da família.
Avaliação
Ética
A Igreja, ao longo de sua
história, tem-se pronunciado favorável e incentivadora à prática dos
transplantes de órgãos como cuidado da saúde do enfermo e gesto de solidariedade
do doador.
Os bispos espanhóis, em
documento de 1984, “exigem certos critérios éticos para os transplantes: o
doador ou seus familiares devem agir com liberdade e sem coação; os
transplantes devem ser realizados por motivos altruístas, e não econômicos;
quando houver a razoável perspectiva de sucesso no receptor e for rigorosamente
comprovada a morte do doador. Satisfeitas essas condições, a fé não obsta a
doação e a Igreja vê nesse gesto uma preciosa imitação de Jesus, que deu a vida
pelos outros.
Para os dois tipos de
transplantes apresentados anteriormente, ao referir-se às pessoas envolvidas
(doador e receptor), o Papa João Paulo II expressa ainda “a necessidade de um
consentimento informado. A ‘autenticidade’ humana de um gesto tão decisivo
requer, de fato, que a pessoa humana seja adequadamente informada sobre os
processos nele implicados, a fim de exprimir de modo consciente e livre o seu
consentimento ou a sua recusa. O consentimento dos parentes tem o seu próprio
valor ético, quando falta a opção do doador. Naturalmente, um consentimento com
característica análogas deverá ser expresso por aquele que recebe os órgãos
doados”.
Outro aspecto relevante nesta
terapia refere-se à destinação dos órgãos doados. Muitos países vêm tentando
eliminar o dilema através de leis preliminares, como, por exemplo, as listas de
espera criadas no Brasil, que seguem a
ordem cronológica; na tentativa de eliminar o comércio de órgãos, o
favorecimento ilícito de pessoas etc.
Ao levantar o problema da designação dos órgãos doados, mediante a
compilação de listas de espera ou de “prioridades”, o Papa João Paulo II fala
da necessidade de critérios clarividentes e oportunamente motivados. “Do ponto
de vista moral, um ponderado princípio de justiça exige que esses critérios de
designação dos órgãos doados não derivem de modo algum de lógicas de tipo
‘discriminatório’ (por exemplo, baseadas na idade, sexo, raça, religião,
condição social etc.), ou de tipo ‘utilitário’ (por exemplo, assentes na
capacidade de trabalho, utilidade social etc.). Pelo contrário, na determinação
das prioridades de acesso aos transplantes dever-se-á respeitar avaliações imunológicas e clínicas. Qualquer outro
critério se revelaria arbitrário e subjetivo, pois não reconheceria o valor
intrínseco que cada ser humano tem enquanto tal, independentemente das circunstâncias
extrínsecas”. Para Fernández, “na seleção dos receptores do transplantes,
deve-se ressaltar duas perspectivas básicas: a necessidade do receptor e a
probabilidade de sucesso do transplante.
Fonte: Livro O que a Igreja
ensina sobre... – Pe. Mário Marcelo Coelho, scj
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