sábado, 3 de novembro de 2012

Transplante de órgãos entre humanos


Introdução

O transplante de órgãos entre humanos caracteriza-se como a retirada de um órgão da pessoa doadora quer “viva” quer “cadáver” para posterior enxerto no organismo humano (receptor). A transplantação de órgãos visa essencialmente a socorrer pessoas com doenças terminais que afetam órgãos vitais (coração, rins, pâncreas,fígado etc.); é usada também para melhorar a qualidade de vida do paciente (transplante de ossos) ou mesmo para estética (transplante de pele).

O transplante de órgãos tem características diversas perante outras questões medicas, ou seja, não está restrito, em sentido clínico, à relação paciente-médico, depende ainda de um terceiro fator externo, que é o doador de órgãos. Embora transplantes sejam baseados em técnicas que são comuns na medicina, não podem ser realizados sem doações de órgãos.


Existem diferentes classificações de tipos de transplantes. Para Lamb, “há quatro tipos diferentes de transplantes que são significativos para se avaliar uma rejeição potencial. Primeiro, há os autransplantes (transplante autoplástico, auto-enxerto, transplante homólogo), que são transplantes de um órgão ou tecido realizados no mesmo indivíduo: isso acontece quando transferem pele, osso, músculo, ou medula óssea, de uma parte do organismo para outra. Segundo, existem os homotransplantes, de um indivíduo para o outro da mesma espécie. Em terceiro lugar, os heterotransplantes (transplante heteroplástico, heteroplásticos, heteroenxerto, enxerto heterólogo), entre indivíduos de diferentes espécies, habitualmente de animais para seres humanos, que também são conhecidos como xenotransplantes. E, por último, os isotransplantes entre indivíduos geneticamente idênticos, caso de gêmeos idênticos.

Doutrina da Igreja Católica

No decorrer da evolução dos transplantes de órgãos, a Igreja Católica sempre os acompanhou como um gesto de doação e grandeza. O Papa Pio XII foi quem ajudou a superar as dificuldades iniciais de alguns moralistas católicos com relação aos transplantes de órgãos procedentes de doador vivo. “O Papa aceitou a aplicação do princípio da totalidade, admitindo a subordinação da ordem somática à ‘finalidade espiritual da própria pessoa’”.

O Papa João Paulo II, em discurso aos participantes do XVIII Congresso Internacional sobre os Transplantes, em agosto de 2000, ressaltou a grandeza do gesto de amor e solidariedade que se expressa de forma concreta pela doação de órgãos. O Papa cita a Encíclica Evangelium vitae: “merece particular apreço a doação de órgãos feita segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem esperança”.

Qualquer intervenção de transplante de órgãos, diz o papa, tem geralmente origem numa decisão de grande valor ético: “A decisão de oferecer, sem recompensa, uma parte do próprio corpo, em benefício da saúde e do bem-estar de outra pessoa”. Nisso consiste a nobreza do gesto que se configura como um autêntico ato de amor e elimina toda a possibilidade de comercialização de órgãos.

Mesmo considerando o valor da doação de órgãos, para melhor ser avaliado o transplante a partir de considerações morais é preciso conhecer a origem do órgão, se é doador vivo ou cadáver. É o que afirma Vidal: “é mister distinguir, antes de mais nada, a doação de um tecido ou de um órgão por parte de uma ‘pessoa viva’ com vistas ao transplante e a extração de alguma parte do corpo de um cadáver”.

Autotransplantes

Os autotransplantes, ou seja, transplantes realizados dentro do mesmo organismo, não apresentam qualquer problema moral, desde que não seja arbitrária a decisão dos médicos, mas que tenha um sentido humano. Há necessidade também de avaliação dos riscos que essa técnica apresenta se forem compensados pelas vantagens.

Transplante entre pessoas vivas

Quando se trata de transplantes de pessoas vivas, ou seja, com doação voluntária de um órgão por parte de uma pessoa viva que se priva dele para ajudar a outra pessoa, Vidal afirma que a avaliação moral está fundamentada em dois princípios que se integram mutuamente: o primeiro é o principio da indisponibilidade da vida própria e da própria integridade funcional. Este princípio preserva a vida da pessoa doadora. Para o autor, se a ciência protege a saúde do doador, não existe motivo de iliceidade. O corpo do doador mantém suas funções fundamentais, ainda que doando uma parte importante dele; o segundo é a solidariedade, em virtude da qual cada um é chamado a da algo de si a quem disto necessita; é um amar-se mútuo até o sacrifício de si mesmo. Por isso, mais do que falar de liceidade neste tipo de transplante, poder-se-ia falar com maior verdade da virtude da caridade.

Ao manifestar sua posição se é moralmente lícita a transplantação de órgão de pessoa viva para outra pessoa viva, Häring afirma: “Em minha opinião, entretanto, a pessoa que , por motivos graves, sacrifica um órgão que não seja para ela de importância vital, em favor do próximo, demonstra com isso um sentimento não apenas subjetivamente digno de respeito, mas que, conforme o caso, pode ser até objetivamente justificável e digno de louvor, como o sacrifício inteiramente  voluntário de Cristo. Ainda para o autor “a questão fundamental de saber se pode ser moralmente lícita e até digna de aplauso a transplantação de órgão de pessoa viva para outra pessoa viva constitui uma pedra de toque da extensão do nosso princípio fundamental referente ao dever que tem o cristão de pôr sua saúde e sua vida a serviço da caridade”.

Para Orduña, “a licitude desses transplantes dependerá do doador, um consentimento com conhecimento de causa, respeitando a sua autonomia e excluindo imposições alheias ou decisões pessoais irresponsáveis; exame dos eventuais prejuízos derivados da extirpação de um órgão; por parte do receptor, é preciso avaliar os riscos e as vantagens tanto no caso de não se realizar o transplante como no caso de fazê-lo”.

Transplantes a partir de um cadáver

Quando se trata de transplantes de cadáver, não existe nenhuma lei divina, moral que proíba tal intervenção. “A extração de um órgão do corpo de um sujeito morto não lesa nenhum direito subjetivo propriamente dito, ou seja, o cadáver não é mais sujeito de direito, uma vez diagnosticada a morte, a discussão está no que fazer quando não houver nenhuma declaração por parte da pessoa falecida”.

Neste tipo de transplante, o grande dilema médico e ético é o benefício para o receptor ao receber o órgão em comparação aos riscos.

O dilema moral é avaliado por Orduña: “No momento de julgar a conveniência moral de um transplante a partir de um cadáver, o aspecto fundamental para o qual se deve atentar deveria ser a influência desse transplante sobre o bem-estar do doente, comparando-se a situação atual com as previsões no caso de realizar ou não o transplante”. Este tipo de transplante apresenta como dilema moral estabelecer o momento da morte da pessoa; quanto a isso, a Igreja confia à medicina que, dentro dos princípios éticos, desenvolva tecnologias capazes de determinar com maior precisão possível a morte cerebral da pessoa; e consentimento da pessoa ou da família.

Lei brasileira dos transplantes

Na tentativa de suprir a escassez de órgãos para o transplante, várias leis ao longo da história foram elaboradas no Brasil voltadas em especial para a regulamentação da doação de cadáveres. Estas leis levantaram vários debates jurídicos, éticos e teológicos. O Congresso Nacional sancionou a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que adotou o conceito da “doação presumida”, disciplinando que todos os brasileiros são doadores, “salvo manifestação da vontade da pessoa doadora em contrário.” Na doação presumida, o que se considera é a vontade da pessoa doadora e não da família.

A doação presumida foi bastante criticada na forma como foi estabelecida. M. Anjos ressalta que isto era extrapolação, ou seja, a concepção da lei extrapola o limite da ética, é uma imposição, pois, a maioria da população brasileira não possui instrução jurídica adequada, existe a falta de informação que comprometeria a manifestação livre e esclarecida do doador.
O artigo 4º da Lei de Transplantes foi alterado pela Medida Provisória nº 2.083/2001, que passa para a família o direito de decidir a doação dos órgãos da pessoa em estado de morte cerebral. Nesse caso, a autonomia da pessoa doadora está sendo desrespeitada, na medida em que a lei considera a vontade da família.

Avaliação Ética

A Igreja, ao longo de sua história, tem-se pronunciado favorável e incentivadora à prática dos transplantes de órgãos como cuidado da saúde do enfermo e gesto de solidariedade do doador.

Os bispos espanhóis, em documento de 1984, “exigem certos critérios éticos para os transplantes: o doador ou seus familiares devem agir com liberdade e sem coação; os transplantes devem ser realizados por motivos altruístas, e não econômicos; quando houver a razoável perspectiva de sucesso no receptor e for rigorosamente comprovada a morte do doador. Satisfeitas essas condições, a fé não obsta a doação e a Igreja vê nesse gesto uma preciosa imitação de Jesus, que deu a vida pelos outros.

Para os dois tipos de transplantes apresentados anteriormente, ao referir-se às pessoas envolvidas (doador e receptor), o Papa João Paulo II expressa ainda “a necessidade de um consentimento informado. A ‘autenticidade’ humana de um gesto tão decisivo requer, de fato, que a pessoa humana seja adequadamente informada sobre os processos nele implicados, a fim de exprimir de modo consciente e livre o seu consentimento ou a sua recusa. O consentimento dos parentes tem o seu próprio valor ético, quando falta a opção do doador. Naturalmente, um consentimento com característica análogas deverá ser expresso por aquele que recebe os órgãos doados”.

Outro aspecto relevante nesta terapia refere-se à destinação dos órgãos doados. Muitos países vêm tentando eliminar o dilema através de leis preliminares, como, por exemplo, as listas de espera criadas no Brasil,  que seguem a ordem cronológica; na tentativa de eliminar o comércio de órgãos, o favorecimento ilícito de pessoas etc.

Ao levantar o problema da designação dos órgãos doados, mediante a compilação de listas de espera ou de “prioridades”, o Papa João Paulo II fala da necessidade de critérios clarividentes e oportunamente motivados. “Do ponto de vista moral, um ponderado princípio de justiça exige que esses critérios de designação dos órgãos doados não derivem de modo algum de lógicas de tipo ‘discriminatório’ (por exemplo, baseadas na idade, sexo, raça, religião, condição social etc.), ou de tipo ‘utilitário’ (por exemplo, assentes na capacidade de trabalho, utilidade social etc.). Pelo contrário, na determinação das prioridades de acesso aos transplantes dever-se-á respeitar avaliações imunológicas e clínicas. Qualquer outro critério se revelaria arbitrário e subjetivo, pois não reconheceria o valor intrínseco que cada ser humano tem enquanto tal, independentemente das circunstâncias extrínsecas”. Para Fernández, “na seleção dos receptores do transplantes, deve-se ressaltar duas perspectivas básicas: a necessidade do receptor e a probabilidade de sucesso do transplante.


Fonte: Livro O que a Igreja ensina sobre... – Pe. Mário Marcelo Coelho, scj

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