ENCÍCLICA
E
SUPREMI APOSTOLATUS
DO
PAPA PIO X
SOBRE A RESTAURAÇÃO
DE TUDO EM CRISTO
Aos veneráveis Irmãos Patriarcas,
Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários
em paz e comunhão com a Sé Apostólica.
Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção
Apostólica.
Sua
elevação ao Pontificado.
1. No momento de vos dirigir pela primeira vez a
palavra do alto desta cátedra apostólica a que fomos elevado por um impenetrável
conselho de Deus, inútil é lembrar-vos com que lágrimas e com que ardentes
preces Nos esforçamos por desviar de nós o múnus tão pesado do Pontificado
supremo. Mau grado a desproporção absoluta dos méritos, parece-nos podermo-nos
apropriar das queixas de S. Anselmo quando, a despeito das suas oposições e das
suas repugnâncias, se viu forçado a aceitar a honra do episcopado. Os
testemunhos de tristeza que ele então deu, Nós podemos produzi-los por Nossa
vez, para mostrarmos em que disposições de alma e de vontade aceitamos a missão
tão temível de pastor do rebanho de Jesus Cristo. As lágrimas dos meus olhos me
são testemunhas, escrevia ele (Ep. 1.III,1), assim como os gritos e, por assim
dizer, os rugidos que meu coração soltava na sua angústia profunda. Eles foram
tais que não me lembro de haver deixado escapar semelhantes em nenhuma dor
antes do dia em que essa calamidade do arcebispado de Cantuária veio desabar
sobre mim. Não puderam ignorá-lo aqueles que, naquele dia, viram de perto o meu
rosto. Mais semelhante a um cadáver do que a um homem vivo, eu estava pálido de
consternação e de dor. A essa eleição, ou, antes, a essa violência, resisti até
agora, digo-o em verdade, tanto quanto me foi possível. Mas agora, a gosto ou a
contragosto, eis-me forçado a reconhecer cada vez mais claramente que os
desígnios de Deus são contrários aos meus esforços, de tal sorte que nenhum
meio me resta de lhes escapar. Vencido menos pela violência dos homens do que
pela violência de Deus, contra quem prudência alguma poderia prevalecer, depois
de fazer todos os esforços em meu poder para que esse cálice se afaste de mim
sem que eu o beba, não vejo outra determinação a tomar senão a de renunciar ao
meu senso próprio, à minha vontade, e entregar-me inteiramente ao juízo e a
vontade de Deus.
Leão XIII
2. Certamente, a Nós também não faltavam numerosos
e sérios motivos para Nos furtarmos ao fardo. Sem contar que, em razão da Nossa
pequenez, a nenhum título podíamos considerar-Nos digno das honras do
Pontificado, como não Nos sentirmos profundamente comovido vendo-Nos escolhido
para suceder àquele que, durante vinte e seis anos, ou pouco falta, em que
governou a Igreja com sabedoria consumada, deu mostras de tal vigor de espírito
e de tão insignes virtudes, que se impôs à admiração dos próprios adversários
e, pelo brilho das obras, imortalizou a sua memória?
Situação calamitosa do mundo.
3. Além disto, e para passar em silêncio muitas
outras razões, Nós experimentávamos uma espécie de terror em considerar as
condições funestas da humanidade na hora presente. Pode-se ignorar a doença
profunda e tão grave que, neste momento muito mais do que no passado, trabalha
a sociedade humana, e que, agravando-se dia a dia e corroendo-a até à medula,
arrasta-a à sua ruína? Essa doença, Veneráveis Irmãos, vós a conheceis, e é,
para com Deus, o abandono e a apostasia; e, sem dúvida, nada há que leve mais
seguramente à ruína, consoante essa palavra do profeta: Eis que os que se
afastam de vós perecerão (Sl 72,27). A tamanho mal Nós compreendíamos que, em
virtude do múnus pontifical a Nós confiado, competia-nos dar remédio; achávamos
que a Nós se dirigia esta ordem de Deus: Eis que hoje te estabeleci sobre as
nações e os reinos para arrancares e para destruíres, para edificares e para
plantares (Jer 1,10); mas, plenamente cônscio da Nossa fraqueza, Nós temíamos
assumir uma obra eriçada de tantas dificuldades, e que, no entanto, não admite
delongas.
Restaurar tudo em Cristo.
Contudo, já que a Deus aprouve elevar a Nossa
baixeza até esta plenitude de poder, Nós haurimos coragem n’Aquele que nos
conforta; e, pondo mãos a obra, sustentado pela força divina, declaramos que o
nosso fito único, no exercício do Sumo Pontificado, é restaurar tudo em Cristo
(Ef 1,10) a fim de que Cristo seja tudo e em tudo (Col 3,14).
4. Haverá, sem dúvida, quem, aplicando às coisas
divinas a curta medida das coisas humanas, procure perscrutar os nossos
pensamentos íntimos e torcê-los às suas vistas terrenas e aos seus interêsses
de partido. Para cortar com essas vãs tentativas, em toda verdade afirmamos que
não queremos ser, e que, com o socorro divino, não havemos de ser, no meio das
sociedades humanas, outra coisa senão o ministro de Deus que nos revestiu da
sua autoridade. Os interêsses D’Ele são os Nossos interêsses; consagrar-lhes as
Nossas forças e a Nossa vida, tal é a nossa resolução inabalável. E é por isto
que, se Nos pedirem um lema que traduza o próprio fundo de Nossa alma, jamais
daremos outro senão este: restaurar todas as coisas em Cristo.
5. Querendo, pois, empreender e prosseguir esta
grande obra, Veneráveis Irmãos, o que redobra o Nosso ardor é a certeza de que
Nos sereis nisso valorosos auxiliares. Se duvidássemos disto, pareceríamos
ter-vos, bem erradamente aliás, por mal informados ou indiferentes, em face da
guerra ímpia que foi suscitada e que em quase toda a parte vai prosseguindo
contra Deus. Nos nossos dias, sobejamente verdadeiro é que as nações fremiram e
os povos meditaram projetos insensatos (Sl 2,1) contra o seu Criador; e quase
comum se tornou este grito dos seus inimigos: Retirai-vos de nós (Job 21,14).
Daí, na maioria, uma rejeição completa de todo o respeito de Deus. Daí hábitos
de vida, tanto privada como publica, em que nenhuma conta se faz da soberania
de Deus. Bem mais, não há esforço nem artifício que se não ponha por obra para
abolir inteiramente a lembrança d’Ele, e até a sua noção.
Audácia dos maus. “o homem usurpou o lugar do
criador”
6. Quem pesa estas coisas tem direito de temer que
uma tal perversão dos espíritos seja o começo dos males anunciados para o fim
dos tempos, e como que a sua tomada de contacto com a terra, e que
verdadeiramente o filho de perdição de que fala o Apóstolo (2 Tess 2,3) já
tenha feito o seu advento entre nós, tamanha é a audácia e tamanha a sanha com que
por toda parte se lança o ataque à religião, com que se investe contra os
dogmas da fé, com que se tende obstinadamente a aniquilar toda a relação do
homem com a Divindade! Em compensação, e é este, no dizer do mesmo Apóstolo, o
caráter próprio do Anticristo, com uma temeridade sem nome o homem usurpou o
lugar do Criador, elevando-se acima de tudo o que traz o nome de Deus. E isso a
tal ponto que, impotente para extinguir completamente em si a noção de Deus,
ele sacode entretanto o jugo da sua majestade, e dedica a si mesmo o mundo
visível à guisa de templo, onde pretende receber as adorações dos seus
semelhantes. Senta-se no templo de Deus, onde se mostra como se fosse o próprio
Deus (2 Tess 2,2).
Vitória certa de Deus.
7. Qual venha a ser o desfecho desse combate
travado contra Deus por uns fracos mortais, nenhum espírito sensato pode pô-lo
em dúvida. Certamente, ao homem que quer abusar da sua liberdade lícito é
violar os direitos e a autoridade suprema do Criador; mas ao Criador fica
sempre a vitória. E ainda não é dizer o bastante: a ruína paira mais de perto
sobre o homem justamente quando mais audacioso ele se ergue na esperança do
triunfo. É o de que o próprio Deus nos adverte nas Sagradas Escrituras. Dizem
elas que Ele fecha os olhos sobre os pecados dos homens (Sab 11,24), como que
esquecido do seu poder e da sua majestade; mas em breve, após essa aparência de
recuo, acordando como um homem cuja força a embriaguez aumentou (Sl 77,65), Ele
quebra a cabeça dos seus inimigos (Sl 67,22), afim de que todos saibam que o
Rei de toda a terra é Deus (Sl 46,8), e afim de que os povos compreendam que
não passam de homens (Sl 9,20).
Deus exige nossa colaboração.
8. Tudo isso, Veneráveis Irmãos, com fé certa
sustentamos e esperamos. Mas esta confiança não nos dispensa, naquilo que de
nós depende, de apressarmos a obra divina, não somente por uma oração
perseverante: Levantai-vos, Senhor, e não permitais que o homem se prevaleça da
sua força (Sl 9,19), mais ainda, e é o que mais importa, pela palavra e pelas
obras, em plena luz, afirmando e reivindicando para Deus a plenitude do seu
domínio sobre os homens e sobre toda criatura, de sorte que os seus direitos e
o seu poder de mandar sejam reconhecidos por todos com veneração, e praticamente
respeitados.
O partido de Deus.
9. Cumprir esses deveres não é apenas obedecer às
leis da natureza, é trabalhar também para vantagem do gênero humano. De feito,
Veneráveis Irmãos, quem poderia deixar de sentir a sua alma presa de temor e de
tristeza em vendo a maioria dos homens, enquanto, por outro lado, se exaltam, e
com justa razão, os progressos da civilização, vendo-os desencadear-se com tal
encarniçamento uns contra os outros, que se diria um combate de todos contra
todos? Sem dúvida, o desejo da paz está em todos os corações, e não há ninguém
que não a chame por todos os seus anseios. Mas essa paz, insensato de quem a
busca fora de Deus; porquanto expulsar a Deus é banir a justiça; e, afastada a
justiça, toda a esperança de paz torna-se uma quimera. A paz é obra da justiça
(Is 32,17). Pessoas há, e, não o ignoramos, em grande número, as quais,
impelidas pelo amor da paz, isto é, da tranqüilidade da ordem, se associam e se
agrupam para formarem o que elas chamam de partido da ordem. Ai! Vãs esperanças,
trabalho perdido! De partidos de ordem capazes de restabelecer a tranqüilidade
no meio da perturbação das coisas, só há um: o partido de Deus. É, pois, este
que nos cumpre promover; é a ele que nos cumpre trazer o maior número de
adeptos possível, por menos que tenhamos a peito a segurança publica.
10. Todavia, Veneráveis Irmãos, essa volta das
nações ao respeito da majestade e da soberania divina, por mais esforços,
aliás, que façamos para realizá-lo, não advirá senão por Jesus Cristo. De
feito, o Apóstolo adverte-nos que ninguém pode lançar outro fundamento senão
aquele que foi lançado e que é o Cristo Jesus (I Cor 3,11). Só a Ele foi que o
Pai santificou e enviou a este mundo (Jo 10, 36), esplendor do Pai e figura da
sua substância (Heb 1,3), verdadeiro Deus e verdadeiro homem sem o qual ninguém
pode conhecer a Deus como convém, pois ninguém conhece o Pai a não ser o Filho
e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo (Mt 11,27).
Reconduzir os homens ao império de Cristo.
11. Donde se segue que restaurar tudo em Cristo e
reconduzir os homens à obediência divina são uma só e mesma coisa. E é por isto
que o fito para o qual devem convergir todos os nossos esforços é reconduzir o
gênero humano ao império de Cristo. Feito isto, o homem achar-se-á, por isso mesmo,
reconduzido a Deus. Mas – queremos dizer – não um Deus inerte e descuidoso das
coisas humanas, como nos seus loucos devaneios o forjaram os materialistas,
senão um Deus vivo e verdadeiro, em três pessoas na unidade de natureza, autor
do mundo, estendendo a todas as coisas a sua infinita Providência, enfim
legislador justíssimo que pune os culpados e assegura às virtudes a sua
recompensa.
A via é a Igreja.
12. Ora, onde está a via que nos dá acesso a Jesus
Cristo? Está debaixo dos nossos olhos: é a Igreja. Diz-no-lo com razão São João
Crisóstomo: a Igreja é a tua esperança, a Igreja é a tua salvação, a Igreja é o
teu refugio (Hom. de capto Eutropio, n. 6).
13. Foi para isso que Cristo a estabeleceu, depois
de adquiri-la ao preço do seu sangue; foi para isso que Ele lhe confiou a sua
doutrina e os preceitos da sua lei, prodigalizando-lhe ao mesmo tempo os
tesouros da graça divina para a santificação e salvação dos homens.
14. Vedes, pois, Veneráveis Irmãos, que obra nos é
confiada, a Nós e a vós. Trata-se de reconduzir as sociedades humanas,
desgarradas longe da sabedoria de Cristo, reconduzi-las à obediência da Igreja;
a Igreja, por seu turno, submetê-las-á a Cristo, e Cristo a Deus. E, se pela
graça divina Nos for dado realizar esta obra, teremos a alegria de ver a
iniqüidade ceder lugar à justiça, e folgaremos de ouvir uma grande voz dizendo
do alto dos céus: Agora é a salvação, e a virtude, e o reino de nosso Deus e o
poder de seu Cristo (Apoc. 12,10).
15. Todavia, para que o resultado corresponda aos Nossos
votos, mister se faz, por todos os meios e à custa de todos os esforços,
desarraigar inteiramente essa detestável e monstruosa iniqüidade própria do
tempo em que vivemos e pela qual o homem se substitui a Deus. Restabelecer na
sua antiga dignidade as leis santíssimas e os conselhos do Evangelho; proclamar
bem alto as verdades ensinadas pela Igreja sobre a santidade do matrimônio,
sobre a educação da infância, sobre a posse e o uso dos bens temporais, sobre
os deveres dos que administram a coisa pública; restabelecer, enfim, o justo
equilíbrio entre as diversas classes da sociedade segundo as leis e as
instituições cristãs.
16. Tais são os princípios que, para obedecer à
divina vontade, Nós Nos propomos aplicar durante todo o curso do Nosso
Pontificado e com toda a energia de Nossa alma.
17. O vosso papel, Veneráveis Irmãos, será
secundar-Nos pela vossa santidade, pela vossa ciência, pela vossa experiência,
e sobretudo pelo vosso zelo da glória de Deus, não visando a nada mais do que a
formar em todos Jesus Cristo (Gal 4,19).
OS MEIOS:
1) Formar Cristo nos Sacerdotes.
18. Que meios importa empregar para atingir um fim
tão elevado? Parece supérfluo indicá-los, tanto eles se apresentam à mente por
si mesmos. Sejam os vossos primeiros cuidados formar Cristo naqueles que, pelo
dever da sua vocação, são destinados a formá-lo nos outros. Queremos falar dos
sacerdotes, Veneráveis Irmãos. Porquanto todos aqueles que são honrados com o
sacerdócio devem saber que tem, entre os povos com que convivem, a mesma missão
que Paulo testava haver recebido, quando pronunciava estas ternas palavras:
Meus filhinhos, a quem eu gero de novo, até que Cristo se forme em vós (Gal 4).
Ora, como poderão eles cumprir um tal dever, se eles próprios não forem
primeiramente revestidos de Cristo? e revestidos até poderem dizer com o
Apóstolo: Vivo, já não eu, mas Cristo vive em mim (Gal 2,20). Para mim Cristo é
a minha vida (Fil 1,21). Por isto, embora todos os fiéis devam aspirar ao
estado de homem perfeito, à medida da idade da plenitude de Cristo (Ef 4,3),
essa obrigação incumbe principalmente àquele que exerce o ministério
sacerdotal. Por isto é ele chamado ‘outro Cristo’; não somente porque participa
do poder de Jesus Cristo, mas porque deve imitar-Lhe as obras e, destarte,
reproduzir-Lhe a imagem em si mesmo.
Cuidados dos seminaristas
19. Se assim é, Veneráveis Irmãos, quão grande não
deve ser a vossa solicitude para formar o clero na santidade! Não há negócio
que não deva ceder o passo a este. E a conseqüência é que o melhor e o principal
do vosso zelo deve aplicar-se aos vossos Seminários, para introduzir neles uma
tal ordem e lhes assegurar um tal governo, que neles se veja florescerem lado a
lado a integridade do ensino e a santidade dos costumes. Fazei do Seminário as
delícias do vosso coração, e não descureis coisa alguma daquilo que, na sua
alta sabedoria, o Concílio de Trento prescreveu para garantir a prosperidade
dessa instituição. Quando chegar o tempo de promover às Sagradas Ordens os
jovens candidatos, ah! Não vos esqueçais daquilo que São Paulo escrevia a
Timóteo: Não imponhas precipitadamente as mãos a ninguém (I Tim. 5,22); bem vos
persuadindo de que, as mais das vezes, tais quais forem aqueles que admitirdes
ao sacerdócio, tais serão também, depois, os fiéis confiados à solicitude
deles. Não olheis, pois, a nenhum interêsse particular, seja de que natureza
fôr; mas tende ùnicamente em mira Deus, a Igreja, a felicidade eterna das
almas, a fim de, como nos adverte o Apóstolo, evitardes participar dos pecados
de outrem (Ibid.).
Cuidados dos novos Sacerdotes.
20. Alias, nem por isto escapem às solicitudes do
vosso zelo os novos padres que saem do Seminário. Estreitai-os,
recomendam-vo-lo do mais profundo de Nossa alma, estreitai-os com freqüência ao
vosso coração, que deve arder de um fogo celeste; aquecei-os, inflamai-os, afim
de que eles, não mais aspirem senão a Deus e à conquista das almas. Quanto a
Nós, Veneráveis Irmãos, velaremos com o maior cuidado por que os membros do
clero não se deixem surpreender pelas manobras insidiosas, de uma certa ciência
nova que se enfeita com a mascara da verdade e onde se não respira o perfume de
Jesus Cristo; ciência mendaz que, com o favor de argumentos falazes e pérfidos,
se esforça por abrir caminho aos erros do racionalismo ou do semi-racionalismo,
e contra a qual o Apóstolo já advertia ao seu caro Timóteo premunir-se, quando
lhe escrevia: Guarda o depósito, evitando as novidades profanas na linguagem,
tanto quanto as objeções de uma ciência falsa, cujos partidários com todas as
suas promessas faliram na fé (I Tim 6,20ss). Não quer isto dizer que não
julguemos dignos de elogios esses padres novos que se consagram a úteis estudos
em todos os ramos da ciência, e assim se preparam para defender melhor a
verdade e para refutar mais vitoriosamente as calúnias dos inimigos da fé. Não
podemos, todavia, dissimulá-lo, e declaramo-lo, mesmo muito abertamente: as
Nossas preferências são e serão sempre por aqueles que, sem descurarem as
ciências eclesiásticas e profanas, se votam mais particularmente ao bem das
almas no exercício dos diversos ministérios que ficam bem ao padre animado de
zelo pela honra divina.
2) Necessidade do Ensino Religioso.
21. É para o Nosso coração uma grande tristeza e
uma contínua dor (Rom. 9,2) verificar que se pode aplicar aos nossos dias esta
queixa de Jeremias: As crianças pediram pão, e não havia ninguém para lhes
partir esse pão (Jer. 4,4). Efetivamente, não falta no clero quem, cedendo a
gostos pessoais, dispenda a sua atividade em coisas de uma utilidade mais
aparente do que real; ao passo que menos numerosos são talvez os que, a exemplo
de Cristo, tomem para si mesmos as palavras do Profeta: O Espírito do Senhor
deu-me a unção, enviou-me a evangelizar os pobres, a curar os que têm o coração
partido, a anunciar os cativos a libertação, e a luz aos cegos (Lc 4,18-19). E,
no entanto, visto que o homem tem por guia a razão e a liberdade, a ninguém
escapa que o principal meio de restituir a Deus o seu império sobre as almas é
o ensino religioso. Quantos que são hostis a Jesus Cristo, que horrorizam a
Igreja e o Evangelho, bem mais por ignorância do que por malícia, e dos quais
se poderia dizer: Blasfemam tudo o que ignoram (Jud. 10)! Estado de alma que
verificamos não sòmente no povo e no seio das classes mais humildes, as quais a
sua própria condição torna mais acessíveis ao erro, mas até nas classes
elevadas, e naqueles mesmos que possuem, aliás, uma instrução pouco comum. Daí,
em muitos, o deperecimento da fé; pois não se deve admitir que sejam os
progressos da ciência que a sufoquem; é, muito antes, a ignorância; de tal
sorte que, onde quer que a ignorância é maior, aí também a incredulidade faz
maiores devastações. Foi por isto que Cristo deu aos apóstolos este preceito:
Ide e ensinai todas as nações (Mt 28,19).
3) A Caridade Cristã.
22. Mas, para que esse zelo em ensinar produza os
frutos que dele se esperam e sirva para formar Cristo em todos, nada mais
eficaz do que a caridade; gravemos isto fortemente na nossa memória, ó
Veneráveis Irmãos, pois o Senhor não está na comoção (III Rs 19,11). Debalde
esperaríamos atrair as almas a Deus por um zelo impregnado de azedume;
exprobrar duramente os erros, e repreender os vícios com aspereza, muitíssimas
vezes causa mais dano do que proveito. Verdade é que o Apóstolo, exortando
Timóteo, lhe dizia: Acusa, suplica, repreende, mas acrescentava: com toda
paciência (II Tim 4,2). Nada mais conforme aos exemplos que Jesus Cristo nos
deixou. É Ele quem nos dirige este convite: Vinde a mim vós todos que sofreis e
que gemeis sob o fardo, e eu vos aliviarei (Mt 11,28). E, no seu pensamento,
esses enfermos e esses oprimidos outros não eram senão os escravos do erro e do
pecado. De feito, que mansidão nesse divino Mestre! Que ternura, que compaixão
para com todos os infelizes! O seu divino Coração é-nos admiràvelmente pintado
por Isaías nestes termos: Pousarei sobre ele o meu espírito; ele não contestará
nem elevará a voz: jamais acabará de quebrar o caniço meio partido, nem
extinguirá a mecha que ainda fumega (Is 42,1ss). Essa caridade paciente e
benigna (I Cor 13,4) deverá ir ao encontro daqueles mesmos que são nossos
adversários e nossos perseguidores. Eles nos maldizem, assim o proclamava São
Paulo, e nós bendizemos; perseguem-nos, e nós suportamos; blasfemam-nos, e nós
oramos (I Cor. 4,12,ss). Talvez que, afinal de contas, eles se mostrem piores
do que são realmente. O contacto com os outros, os preconceitos, a influência
das doutrinas e dos exemplos, enfim o respeito humano, conselheiro funesto,
inscreveram-nos no partido da impiedade; mas, no fundo, a vontade deles não é
tão depravada como eles se comprazem em fazer crer. Porque então não haveríamos
de esperar que a chama da caridade dissipe enfim as trevas da alma deles, e
faça reinar nelas, com a luz, a paz de Deus? Mais de uma vez o fruto do nosso
trabalho talvez se faça esperar; mas a caridade não se cansa, persuadida de que
Deus mede a suas recompensas não pelos resultados, mas pela boa vontade.
Todos os fiéis devem colaborar.
23. Entretanto, Veneráveis Irmãos, absolutamente
não é Nosso pensamento que, nessa obra tão árdua da renovação dos povos por
Cristo, vós e o vosso clero fiqueis sem auxiliares. Sabemos que Deus recomendou
a cada um o cuidado do seu próximo (Ecli 17,12). Não são, pois, sòmente os
homens revestidos do sacerdócio, mas sim todos os fiéis sem exceção, que devem
dedicar-se aos interêsses de Deus e das almas: certamente, não cada um ao sabor
das suas vistas e das suas tendências, mas sempre sob a direção e segundo a
vontade dos Bispos, pois o direito de mandar, de ensinar, de dirigir não
pertence a ninguém mais na Igreja senão a vós, estabelecidos pelo Espírito
Santo para regerdes a Igreja de Deus (At 20,28).
a) Nas associações.
24. Associar-se entre católicos com intuitos
diversos, mas sempre para o bem da religião, é coisa que, de há longo tempo,
tem merecido a aprovação e as bênçãos dos Nossos predecessores. Nós também não
hesitamos em louvar tão pela obra, e vivamente desejamos que ela se difunda e
floresça por toda parte, nas cidades como nos campos. Mas, ao mesmo tempo,
entendemos que essas associações tenham por primeiro e principal objeto fazer
que os que nelas se alistam cumpram fielmente os deveres da vida cristã. Pouco
importa, em verdade, agitar sutilmente múltiplas questões e dissertar com
eloqüência sobre direitos e deveres, se tudo isso não redunda na ação. A ação,
eis o que reclamam os tempos presentes; mas uma ação que se aplique sem reserva
à observância integral e escrupulosa das leis divinas e das prescrições da
Igreja, à profissão aberta e ousada da religião, ao exercício da caridade sob
todas as suas formas, sem preocupação alguma de si mesmo nem das suas vantagens
terrenas. Esplêndidos exemplos deste gênero dados por tantos soldados de Cristo
mais depressa abalarão e arrastarão as almas, do que a multiplicidade das palavras
e do que a sutileza das discussões; e ver-se-ão, sem dúvida, multidões de
homens, calcando aos pés o respeito humano, desprendendo-se de todo preconceito
e de toda hesitação, aderir a Cristo e promover, por seu turno, o conhecimento
e o amor de Cristo, penhor da verdadeira e sólida felicidade.
b) Pelo fervor da vida cristã.
25. Certamente, no dia em que, em cada cidade, em
cada aldeia, a lei do Senhor for cuidadosamente guardada, as coisas santas
forem cercadas de respeito, os sacramentos freqüentados, em suma, tudo o que
constitui a vida cristã for reposto em honra, nada mais faltará, Veneráveis
Irmãos, para que Nós contemplemos a restauração de todas as coisas em Cristo. E
não se creia que tudo isso se refere somente à aquisição dos bens eternos; os
interêsses temporais e a prosperidade pública também se ressentirão mui
felizmente disso. Porquanto, uma vez obtidos esses resultados, os nobres e os
ricos saberão ser justos e caridosos para com os pequenos, e estes suportarão
na paz e na paciência as privações da sua pouca afortunada condição; os
cidadãos obedecerão não mais ao arbítrio, porém às leis; todos considerarão
como um dever o respeito e o amor para com os que governam, e cujo poder só vem
de Deus (Rom 13,1).
A Igreja deve ser livre
26. Há mais. Assim sendo, a todos será manifesto
que a Igreja, tal como foi instituída por Jesus Cristo, deve gozar de plena e
inteira liberdade, e não ser submetida a nenhuma dominação humana; e que Nós
mesmos, reivindicando essa liberdade, não somente salvaguardamos os direitos
sagrados da religião, mas provemos também ao bem comum e à segurança dos povos:
a piedade é útil a tudo (I Tim 4,8), e, onde quer que ela reine, o povo está
verdadeiramente assente na plenitude da paz (Is 32,18).
Conclusão
27. Que Deus, rico em misericórdia (Ef 2,4),
apresse, na sua bondade, essa renovação do gênero humano em Jesus Cristo, visto
não ser isso obra nem daquele que quer, nem daquele que corre, mas do Deus das
misericórdias (Rom 9,16). E nós todos, Veneráveis Irmãos, peçamos-lhe esta
graça em espírito de humildade (Dan 3,39), por uma oração instante e contínua,
apoiada nos méritos de Jesus Cristo. Recorramos também à intercessão
poderosíssima da divina Mãe. E, para mais largamente obtê-la, tomando ensejo
deste dia em que vos dirigimos estas Letras, e que foi instituído para
solenizar O santo Rosário, confirmamos todas as ordenações pelas quais o Nosso
predecessor consagrou o mês de outubro à augusta Virgem, e prescreveu em todas
as igrejas a recitação pública do Rosário. Exortamos-vos, além disso, a
tomardes também por intercessores o puríssimo Esposo de Maria, padroeiro da
Igreja Católica, e os príncipes dos apóstolos, São Pedro e São Paulo.
28. Para que todas estas coisas se realizem segundo
os Nossos desejos, e para que todos os vossos trabalhos sejam coroados de
êxito, Nós imploramos sobre vós, em grande abundância, os dons da graça divina.
E, como testemunho da terna caridade em que voz abraçamos, a vós e a todos os
fiéis pela Divina Providência confiados aos vossos cuidados, Nós vos concedemos
em Deus, com abundância de coração, Veneráveis Irmãos, bem como ao vosso clero
e ao vosso povo, a Benção Apostólica.
Dado em Roma, junto de São Pedro, a 4 de outubro do
ano de 1903, primeiro do Nosso Pontificado.
PIO X, PAPA.
Nenhum comentário:
Postar um comentário