CARTA
ENCÍCLICA
MEDIATOR DEI
DO PAPA PIO XII
SOBRE
A SAGRADA LITURGIA
Aos veneráveis irmãos Patriarcas,
Primazes,
Arcebispos, Bispos e aos outros Ordinários locais
em paz e comunhão com a Sé Apostólica
Arcebispos, Bispos e aos outros Ordinários locais
em paz e comunhão com a Sé Apostólica
INTRODUÇÃO
1.
"O mediador entre Deus e os homens", (1) o grande pontífice que penetrou
os céus, Jesus filho de Deus,(2) assumindo a obra de misericórdia com a qual
enriqueceu o gênero humano de benefícios sobrenaturais, visou sem dúvida a
restabelecer entre os homens e o Criador aquela ordem que o pecado tinha
perturbado e a reconduzir ao Pai celeste, primeiro princípio e último fim, a
mísera estirpe de Adão, infeccionada pelo pecado original. E por isso, durante
a sua permanência na terra, não só anunciou o início da redenção e declarou
inaugurado o reino de Deus, mas ainda cuidou de promover a salvação das almas
pelo contínuo exercício da pregação e do sacrifício, até que, na cruz, se
ofereceu a Deus qual vítima imaculada para "purificar a nossa consciência
das obras mortas, para servir a Deus vivo".(3) Assim, todos os homens,
felizmente chamados do caminho que os arrastava à ruína e à perdição, foram
ordenados de novo a Deus, a fim de que, com sua pessoal colaboração na obra da
própria santificação, fruto do sangue imaculado do Cordeiro, dessem a Deus a
glória que lhe é devida.
2. O Divino
Redentor quis, ainda, que a vida sacerdotal por ele iniciada em seu corpo
mortal com as suas preces e o seu sacrifício, não cessasse no correr dos
séculos no seu corpo místico, que é a Igreja; e por isso instituiu um
sacerdócio visível para oferecer em toda parte a oblação pura, (4) a fim de que
todos os homens, do oriente ao ocidente, libertos do pecado, por dever de
consciência servissem espontânea e voluntariamente a Deus.
3. A
Igreja, pois, fiel ao mandato recebido do seu Fundador, continua o ofício
sacerdotal de Jesus Cristo, sobretudo com a sagrada liturgia. E o faz em
primeiro lugar no altar, onde o sacrifício da cruz é perpetuamente
representado(5) e renovado, com a só diferença no modo de oferecer; em seguida,
com os sacramentos, que são instrumentos particulares por meio dos quais os
homens participam da vida sobrenatural; enfim, com o tributo cotidiano de
louvores oferecido a Deus ótimo e máximo(6). "Que jubiloso espetáculo -
diz o nosso predecessor de feliz memória Pio XI - oferece ao céu e à terra a
Igreja que reza, enquanto continuamente dia e noite, se cantam na terra os
salmos escritos por inspiração divina: nenhuma hora do dia transcorre sem a
consagração de uma liturgia própria; cada etapa da vida tem seu lugar na ação
de graças, nos louvores, preces e aspirações desta comum oração do corpo
místico de Cristo, que é a Igreja."(7)
4.
Certamente conheceis, veneráveis irmãos, que, no fim do século passado e nos
princípios do presente, houve singular fervor de estudos litúrgicos; já por
louvável iniciativa de alguns particulares, já sobretudo pela zelosa e assídua
diligência de vários mosteiros da ínclita ordem beneditina; assim que não
somente em muitas regiões da Europa, mas ainda nas terras de além-mar, se
desenvolveu a esse respeito uma louvável e útil emulação, cujas benéficas
conseqüências foram visíveis, quer no campo das disciplinas sagradas, onde os
ritos litúrgicos da Igreja oriental e ocidental foram mais ampla e
profundamente estudados e conhecidos, quer na vida espiritual e íntima de
muitos cristãos. As augustas cerimônias do sacrifício do altar foram mais
conhecidas, compreendidas e estimadas; a participação aos sacramentos maior e
mais freqüente; as orações litúrgicas mais suavemente saboreadas e o culto
eucarístico tido, como verdadeiramente o é, por centro e fonte da verdadeira
piedade cristã. Além disso, pôs-se em mais clara evidência o fato de que todos
os fiéis constituem um só e compacto corpo de que é Cristo a cabeça, com o
conseqüente dever para o povo cristão de participar, segundo a própria
condição, dos ritos litúrgicos.
5. Sem
dúvida, sabeis muito bem que esta Sé Apostólica sempre zelou para que o povo a
ela confiado fosse educado num verdadeiro e ativo sentido litúrgico e que, com
zelo não menor se tem preocupado em que os sagrados ritos brilhem até
externamente por uma adequada dignidade. Nessa mesma ordem de idéias, falando,
segundo o costume, aos pregadores quaresmais desta nossa excelsa cidade, em
1943, nós os havíamos calorosamente exortado a advertir os seus ouvintes que
participassem, com maior empenho, do sacrifício eucarístico; e recentemente
fizemos traduzir de novo em latim, do texto original, o livro dos Salmos para
que as preces litúrgicas, de que são eles a parte maior na Igreja católica,
fossem mais exatamente entendidas e a sua verdade e suavidade mais facilmente
percebidas.(8)
6.
Todavia, enquanto pelos salutares frutos que dele derivam, o apostolado
litúrgico nos é de não pequeno conforto, o nosso dever nos impõe seguir com
atenção esta "renovação" na maneira pela qual é concebida por alguns,
e cuidar diligentemente para que as iniciativas não se tornem excessivas nem
insuficientes.
7. Ora,
se de uma parte verificamos com pesar que em algumas regiões o sentido, o
conhecimento e o estudo da liturgia são às vezes escassos ou quase nulos; de
outra, notamos, com muita apreensão, que há algumas pessoas muito ávidas de
novidades e que se afastam do caminho da sã doutrina e da prudência. Na
intenção e desejo de um renovamento litúrgico, esses inserem muitas vezes princípios
que, em teoria ou na prática, comprometem esta santíssima causa, e
freqüentemente até a contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina
ascética.
8. A
pureza da fé e da moral deve ser a norma característica desta sagrada
disciplina, que deve necessariamente conformar-se ao sapientíssimo ensinamento
da Igreja. É, portanto, nosso dever louvar e aprovar tudo o que é bem feito,
conter ou reprovar tudo o que se desvia do verdadeiro e justo caminho.
9. Não
acreditem, pois, os inertes e os tíbios ter a nossa aprovação porque
repreendemos os que erram e contemos os audazes; nem os imprudentes se tenham
por louvados quando corrigimos os negligentes e os preguiçosos. Ainda que nesta
nossa encíclica tratemos sobretudo da liturgia latina, não é que tenhamos em
menor estima as venerandas liturgias da Igreja oriental, cujos ritos,
transmitidos por nobres e antigos documentos, nos são igualmente caríssimos;
mas visamos antes às condições particulares da Igreja ocidental, que são tais
que reclamam a intervenção da nossa autoridade.
10.
Ouçam, pois, os cristãos todos, com docilidade, a voz do Pai comum, o qual
deseja ardentemente que todos, unidos a ele intimamente, se aproximem do altar
de Deus, professando a mesma fé, obedecendo à mesma lei, participando do mesmo
sacrifício com uma só inteligência e uma só vontade. O respeito devido a Deus o
reclama; as necessidades dos tempos presentes o exigem. Após uma longa e cruel
guerra que dividiu os povos com rivalidades e morticínios, os homens de boa
vontade se esforçam do melhor modo possível, em reconduzir todos à concórdia.
Acreditamos, todavia, que nenhum projeto e nenhuma iniciativa seja, neste caso,
tão eficaz quanto um fervoroso espírito religioso e zelo ardente, do qual é
necessário estejam animados e guiados todos os cristãos, a fim de que,
aceitando de coração aberto as mesmas verdades e obedecendo docilmente aos
legítimos pastores, no exercício do culto devido a Deus, constituam uma
comunidade fraterna, porquanto, "ainda que muitos, somos um só corpo,
participando todos do único pão.(9)
PRIMEIRA
PARTE
NATUREZA,
ORIGEM, PROGRESSO DA LITURGIA
I. A
liturgia é culto público
11. O
dever fundamental do homem é certamente este de orientar a si mesmo e a própria
vida para Deus. "A ele, com efeito, devemos principalmente unir-nos como
indefectível princípio, ao qual deve ainda constantemente aplicar-se a nossa
escolha como ao último fim, que perdemos pecando, mesmo por negligência, e que
devemos reconquistar pela fé, crendo nele".(10) Ora, o homem se volta
ordinariamente para Deus quando lhe reconhece a suprema majestade e o supremo
magistério, quando aceita com submissão as verdades divinamente reveladas,
quando lhe observa religiosamente as leis, quando faz convergir para ele toda a
sua atividade, quando - para dizer resumidamente - presta, mediante a virtude
da religião, o devido culto ao único e verdadeiro Deus.
12. Esse
é um dever que obriga antes de tudo os homens individualmente, mas é ainda um
dever coletivo de toda a comunidade humana ordenada com recíprocos vínculos
sociais, porque também ela depende da suma autoridade de Deus.
13.
Note-se ainda que esse é um dever particular dos homens, porquanto Deus os
elevou à ordem sobrenatural. Assim, se consideramos Deus como autor da antiga
Lei, vemo-lo proclamar preceitos rituais e determinar acuradamente as normas
que o povo deve observar ao render-lhe o legítimo culto. Estabeleceu, para
isso, vários sacrifícios e designou várias cerimônias com que deviam
realizar-se e determinou claramente o que se referia à arca da aliança, ao
templo e aos dias festivos; designou a tribo sacerdotal e o sumo sacerdote,
indicou e descreveu as vestes para uso dos sagrados ministros e tudo o mais que
tinha relação com o culto divino.(11)
14. Esse
culto, aliás, não era mais do que a sombra(12) daquele que o sumo sacerdote do
Novo Testamento havia de render ao Pai celeste.
15. De
fato, apenas "o Verbo se fez carne",(13) manifesta-se ao mundo no seu
ofício sacerdotal, fazendo ao Pai Eterno um ato de submissão que durará por
todo o tempo de sua vida: "entrando no mundo, diz... eis que venho... para
fazer, ó Deus, a tua vontade...",(14) um ato que será consumado de modo
admirável no sacrifício cruento da cruz: "Pelo poder desta vontade fomos
santificados por meio da oblação do corpo de Jesus Cristo feita uma só vez para
sempre".(15) Toda a sua atividade entre os homens não tem outro escopo.
Menino, é apresentando no templo ao Senhor; adolescente, ali volta ainda; em
seguida ali vai freqüentemente para instruir o povo e para rezar. Antes de
iniciar o ministério público jejua durante quarenta dias, e com seu conselho e
o seu exemplo exorta todos a rezarem de dia e de noite. Como mestre de verdade,
"ilumina todo homem"(16) para que os mortais reconheçam
convenientemente o Deus imortal, e não "se afastem para sua perdição, mas
guardem a fé para salvar a sua alma".(17) Como Pastor, depois, ele governa
o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens da vida, e dá uma lei a observar, para
que ninguém se afaste dele e da reta via que traçou, mas todos vivam santamente
sob o seu influxo e a sua ação. Na última ceia, com rito e aparato solene,
celebra a nova páscoa e provê a sua continuação mediante a divina instituição
da eucaristia; no dia seguinte, elevado entre o céu e a terra, oferece o
sacrifício salutar de sua vida; de seu peito rasgado faz, de certo modo, jorrar
os sacramentos que distribuem às almas os tesouros da redenção. Fazendo isso,
tem por único fim a glória do Pai e a crescente santificação do homem.
16.
Entrando, depois, na sede da beatitude celeste, quer que o culto por ele
instituído e prestado durante a sua vida terrena continue ininterrupto. Já que
não deixou órfão o gênero humano, mas o assiste sempre com o seu contínuo e
valioso patrocínio, fazendo-se nosso advogado no céu junto do Pai,(18) assim o
ajuda mediante a sua Igreja, na qual está indefectivelmente presente no correr
dos séculos, Igreja que constituiu coluna da verdade(19) e dispensadora de
graça, e que, com o sacrifício da cruz, fundou, consagrou e conformou
eternamente.(20)
17. A
Igreja, portanto, tem em comum com o Verbo encarnado o escopo, o empenho e a
função de ensinar a todos a verdade, reger e governar os homens, oferecer a
Deus o sacrifício, aceitável e grato, e assim restabelecer entre o Criador e as
criaturas aquela união e harmonia que o apóstolo das gentes claramente indica
por estas palavras: "Não sois mais hóspedes ou adventícios, mas
concidadãos dos santos e membros da família de Deus, educados sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas, com o próprio Jesus Cristo por pedra
angular, sobre a qual todo o edifício bem ordenado se levanta para ser um
templo santo no Senhor, e sobre ele vós sois também juntamente edificados em
morada de Deus, pelo Espírito".(21) Por isso a sociedade fundada pelo
divino Redentor não tem outro fim, seja com a sua doutrina e o seu governo,
seja com o sacrifício e os sacramentos por ele instituídos, seja enfim com o
ministério que lhe contou, com as suas orações e o seu sangue, senão crescer e
dilatar-se sempre mais - o que se dá quando Cristo é edificado e dilatado nas
almas dos mortais, e quando, vice-versa, as almas dos mortais são educadas e
dilatadas em Cristo; de maneira que, neste exílio terreno prospere o templo no
qual a divina majestade recebe o culto grato e legítimo. Em toda ação
litúrgica, junto com a Igreja está presente o seu divino Fundador: Cristo está
presente no augusto sacrifício do altar, quer na pessoa do seu ministro, quer
por excelência, sob as espécies eucarísticas; está presente nos sacramentos com
a virtude que neles transfunde, para que sejam instrumentos eficazes de
santidade; está presente, enfim, nos louvores e súplicas dirigidas a Deus, como
vem escrito: "Onde estão duas ou três pessoas reunidas em meu nome aí estou
no meio delas".(22) A sagrada liturgia é, portanto, o culto público que o
nosso Redentor rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade
dos fiéis rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em uma
palavra, o culto integral do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da cabeça
e de seus membros.
18. A
ação litúrgica inicia-se com a fundação da própria Igreja. Os primeiros
cristãos, com efeito, "eram assíduos aos ensinamentos dos apóstolos, e à
comum fração do pão e à oração".(23) Em toda a parte onde os pastores
possam reunir um núcleo de fiéis, erigem um altar sobre o qual oferecem o
sacrifício, e em torno dele vêm dispostos outros ritos adaptados à santificação
dos homens e à glorificação de Deus. Entre esse ritos estão, em primeiro lugar,
os sacramentos, isto é, as sete principais fontes de salvação; depois, está a
celebração do louvor divino, com o qual os féis reunidos obedecem à exortação
do Apóstolo: "Instruindo-vos e exortando-vos uns aos outros com toda a
sabedoria, cantando a Deus em vosso coração, inspirados pela graça, salmos,
hinos e cânticos espirituais";(24) depois, ainda, a leitura da Lei, dos
Profetas, do Evangelho e das epístolas apostólicas; e, enfim, a prática com a
qual o presidente da assembléia recorda e comenta utilmente os preceitos do
divino Mestre, os acontecimentos principais de sua vida, e admoesta todos os
presentes com exortações oportunas e exemplos.
19. O
culto se organiza e se desenvolve segundo as circunstâncias e as necessidades
dos cristãos, se enriquece de novos ritos, cerimônias e fórmulas, sempre com o
mesmo intento: "a fim de que sejamos estimulados por aqueles sinais...
conheçamos o progresso realizado e nos sintamos solicitados a desenvolvê-lo com
maior vigor; o efeito, de fato, é mais digno, se mais ardente é o afeto que o
precede".(25) Assim a alma se eleva a Deus mais e melhor; assim o
sacerdócio de Jesus Cristo está sempre em ato na sucessão dos tempos, não sendo
a liturgia outra coisa que o exercício desse sacerdócio. Como a sua cabeça
divina, assim a Igreja assiste continuamente os seus filhos, ajuda-os e
exorta-os à santidade, para que, ornados com essa dignidade sobrenatural,
possam um dia voltar ao Pai que está nos céus. Ela restaura para a vida celeste
os nascidos à vida terrena, dá-lhes a ajuda do Espírito Santo na luta contra o
inimigo implacável; chama os cristãos em torno dos altares e, com insistentes
convites, exorta-os a celebrar e tomar parte no sacrifício eucarístico, e
nutre-os com o pão dos anjos, para que sejam sempre mais firmes; purifica e
consola aqueles que o pecado feriu e maculou; consagra com legítimo rito
aqueles que, por vocação divina, são chamados ao ministério sacerdotal;
revigora com graças e dons divinos o casto conúbio daqueles que são destinados
a fundar e constituir a família cristã; depois de ter confortado e restaurado
com o viático eucarístico e a sagrada unção as últimas horas da vida terrena,
acompanha ao túmulo com suma piedade os despojos dos seus filhos, dispondo-os
religiosamente, protegendo-os ao abrigo da cruz, para que possam um dia
ressurgir triunfando da morte; abençoa com particular solenidade quantos
dedicam a sua vida ao serviço divino na consecução da perfeição religiosa;
estende a sua mão caridosa às almas que, nas chamas da purificação, imploram
preces e sufrágios, para conduzi-las finalmente à eterna beatitude.
II. A
liturgia é culto externo e interno
20. Todo
o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e externo. É
externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque
Deus dispõe que "pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao
amor das invisíveis"; (26) porque tudo o que vem da alma é naturalmente
expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao
particular mas também à coletividade humana e conseqüentemente é necessário que
seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e
manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em
evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos,
consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a ação: "se bem que, com efeito,
as cerimônias, em si mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são
todavia atos externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração
das coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a piedade,
fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção, instruem os simples,
ornam o culto de Deus, conservam a religião e distinguem os verdadeiros dos
falsos cristãos e dos heterodoxos.(27)
21. Mas o
elemento essencial do culto deve ser o interno. É necessário, com efeito, viver
sempre em Cristo, dedicar-se todo a ele, a fim de que nele, com ele e por ele,
se dê glória ao Pai. A sagrada liturgia requer que estes dois elementos estejam
intimamente ligados; o que ela não se cansa jamais de repetir toda vez que
prescreve um ato externo de culto. Assim, por exemplo, a propósito do jejum,
nos exorta: "a fim de que se opere de fato em nosso íntimo o que a nossa
observância professa externamente".(28) De outro modo, a religião se torna
um formalismo sem fundamento e sem conteúdo. Sabeis, veneráveis irmãos, que o
divino Mestre considera indignos do templo sagrado e expulsa dele os que crêem
honrar a Deus somente com o som de bem construídas palavras e com atitudes
teatrais e estão persuadidos de poder prover de modo adequado à sua salvação
sem arrancar da alma os vícios inveterados".(29) A Igreja, portanto, quer
que todos os fiéis se prostrem aos pés do Redentor para professar-lhe o seu
amor e a sua veneração; quer que as multidões, como as crianças que andaram ao
encontro de Cristo quando entrava em Jerusalém com alegres aclamações,
acompanhem o Rei dos reis e o sumo autor de todos os benefícios, aclamando-o
com o canto de glória e de agradecimento; quer que haja orações em seus lábios,
ora súplices, ora alegres e agradecidas, com as quais, como os apóstolos junto
ao lago de Tiberíades, possam experimentar o auxílio de sua misericórdia e de
seu poder; ou como Pedro, no monte Tabor, a Deus se abandonem e a todas as suas
coisas nos místicos transportes da contemplação.
22. Não
têm, pois, noção exata da sagrada liturgia aqueles que a consideram como parte
somente externa e sensível do culto divino ou como cerimonial decorativo; nem
se enganam menos aqueles que a consideram como mero conjunto de leis e
preceitos com que a hierarquia eclesiástica ordena a realização dos ritos.
23. Deve,
portanto, ser bem conhecido de todos que não se pode honrar dignamente a Deus,
se a alma não cuida de conseguir a perfeição da vida, e que o culto rendido a
Deus pela Igreja em união com a sua Cabeça divina tem a eficácia suprema de
santificação.
24. Essa
eficácia, se se trata do sacrifício eucarístico e dos sacramentos, provém antes
de tudo do valor da ação em si mesma (ex opere operato); se se considera
ainda a atividade própria da imaculada esposa de Jesus Cristo com a qual orna
de orações e de sacras cerimônias o sacrifício eucarístico e os sacramentos,
ou, se se trata dos sacramentais e de outros ritos instituídos pela hierarquia
eclesiástica, então a eficácia deriva principalmente da ação da Igreja (ex
opere operantis Ecclesiae), enquanto esta é santa e opera sempre em íntima
união com a sua Cabeça.
25. A
esse propósito, veneráveis irmãos, desejamos que volvais a vossa atenção às
novas teorias sobre "piedade objetiva" segundo as quais,
esforçando-se para pôr em evidência o mistério do corpo místico, a realidade
efetiva da graça santificante e a ação divina dos sacramentos e do sacrifício
eucarístico, se pretenderia descuidar ou diminuir a "piedade
subjetiva" ou pessoal.
26. Nas
celebrações litúrgicas e, em particular, no augusto sacrifício do altar,
continua-se, sem dúvida, a obra da nossa redenção, cujos frutos nos são
aplicados. Cristo realiza a nossa salvação cada dia nos sacramentos e no seu
sacrifício e, por meio deles, purifica continuamente e consagra a Deus o gênero
humano. Têm, portanto, uma virtude objetiva, com a qual, de fato, fazem nossas
almas participantes da vida divina de Jesus Cristo. Eles, pois, têm não por
nossa, mas por divina virtude, a eficácia de reunir a piedade dos membros com a
piedade da Cabeça e torná-la, de certo modo, uma ação de toda a comunidade.
Desses profundos argumentos alguns concluem que toda a piedade cristã deve
concentrar-se no mistério do corpo místico de Cristo, sem nenhuma consideração
pessoal e subjetiva, e por isso acreditam que se deva descuidar das outras
práticas religiosas não estritamente litúrgicas e realizadas fora do culto
público.
27.
Todos, no entanto, podem verificar que essas conclusões acerca das duas
espécies de piedade, ainda que os princípios acima expostos sejam ótimos, são
completamente falsas, insidiosas e perniciosíssimas.
28. É
verdade que os sacramentos e o sacrifício do altar têm uma intrínseca virtude
enquanto são ações do próprio Cristo que comunica e difunde a graça da Cabeça
divina nos membros do corpo místico; mas, para terem a devida eficácia, exigem
as boas disposições da nossa alma; como, a propósito da eucaristia, são Paulo admoesta:
"cada um examine a si mesmo e coma deste pão e beba do cálice".(30)
Por isso mesmo, a Igreja define com brevidade e clareza todos os exercícios com
os quais a nossa alma se purifica, especialmente durante a quaresma:
"fortalezas da milícia cristã"; (31) são, com efeito, as ações dos
membros que, com o auxílio da graça, desejam aderir à sua Cabeça a fim de que
"nos seja manifesta - para repetir as palavras de santo Agostinho - na
nossa Cabeça a própria fonte da graça".(32) Mas deve-se notar que estes membros
são vivos, providos de razão e de vontade própria; por isso é necessário que
eles, encostando os lábios à fonte, retirem e assimilem o alimento vital e
removam tudo o que lhe pode impedir a eficácia. Devemos, pois, afirmar que a
obra da redenção, independente em si mesma da nossa vontade, requer o esforço
íntimo da nossa alma para que possamos conseguir a eterna salvação.
29. Se a
piedade privada e interna dos particulares se descuidasse do augusto sacrifício
do altar e dos sacramentos, e se subtraísse ao influxo salvador que emana da
Cabeça nos membros, seria, sem dúvida, reprovável e estéril; mas quando todas
as providências e os exercícios de piedade não estritamente litúrgicos fixam o
olhar da alma sobre atos humanos unicamente para endereçá-los ao Pai que está
nos céus; para estimular salutarmente os homens à penitência e ao temor de Deus
e arrancá-los da atração do mundo e dos vícios, para conduzi-los felizmente por
árduo caminho ao vértice da santidade, então, não apenas são sumamente louváveis,
mas necessários, porque descobrem os perigos da vida espiritual, estimulam-nos
à aquisição da virtude e aumentam o fervor com o qual nos devemos dedicar todos
ao serviço de Jesus Cristo. A genuína piedade que o Angélico chama
"devoção" e que é o ato principal da virtude da religião com o qual
os homens se ordenam retamente, se orientam oportunamente para Deus e
livremente se consagram ao culto,(33) têm necessidade da meditação das
realidades sobrenaturais e das práticas espirituais para que se alimente, estimule
e fortifique e nos anime à perfeição. É que a religião cristã devidamente
praticada requer, sobretudo, que a vontade se consagre a Deus e influa sobre as
outras faculdades da alma. Mas todo ato da vontade pressupõe o exercício da
inteligência e, antes que se conceba o desejo e o propósito de dar-se a Deus
por meio do sacrifício, é absolutamente necessário o conhecimento dos
argumentos e dos motivos que levam à religião, como, por exemplo, o fim último
do homem e a grandeza da divina Majestade, o dever de obediência ao Criador, os
tesouros inexauríveis do amor com o qual ele nos quis enriquecer, a necessidade
da graça para alcançar a meta assinalada, e o caminho particular que a divina
Providência nos preparou unindo-nos todos, como membros de um corpo, a Jesus
Cristo Cabeça. E já que nem sempre os motivos do amor dominam a alma agitada
pelas paixões, é muito oportuno que nos impressione ainda a consideração
salutar da divina justiça para levar-nos à humildade cristã, à penitência e à
emenda.
30. Todas
estas considerações não devem ser uma vazia e abstrata lembrança, mas devem
visar efetivamente a submeter os nossos sentidos e as suas faculdades à razão
iluminada pela fé, a purificar a alma que se une cada dia mais intimamente a
Cristo e sempre mais a ele se conforma e dele recebe a inspiração e a força
divina de que tem necessidade; e para que sejam aos homens estímulo sempre mais
eficaz ao bem, à fidelidade ao próprio dever, à prática da religião, ao
fervoroso exercício da virtude, é necessário ter presente este ensinamento:
"Sois de Cristo e Cristo é de Deus".(34) Tudo, pois, seja orgânico e
teocêntrico se queremos que tudo seja em verdade endereçado à glória de Deus
pela vida e pela virtude que nos vêm da nossa Cabeça divina: "tendo, pois,
confiança de entrar no santo dos santos pelo sangue de Cristo, pelo novo e vivo
caminho que ele inaugurou para nós através da sua carne, e tendo um grande
sacerdote que preside à casa de Deus, aproximemo-nos com um coração sincero,
com plenitude de fé, alma purificada da consciência de culpa, lavado o corpo
com água limpa, apeguemo-nos firmes à profissão da nossa esperança... e sejamos
solícitos uns para com os outros, para nos estimularmos à caridade e às boas
obras". (35)
31. Disso
deriva o harmonioso equilíbrio dos membros do corpo místico de Jesus Cristo.
Com o ensino da fé católica, com a exortação à observância dos preceitos
cristãos, a Igreja prepara o caminho à sua ação propriamente sacerdotal e
santificadora; dispõe-nos a uma contemplação mais íntima da vida do divino
Redentor e nos conduz a uma consciência mais profunda dos mistérios da fé para
que recebamos o alimento sobrenatural e a força para seguro progresso na vida
perfeita por meio de Jesus Cristo. Não somente pelas obras de seus ministros
mas ainda pelas obras dos fiéis particulares imbuídos do espírito de Jesus
Cristo, a Igreja se esforça em fazer penetrar esse mesmo espírito na vida e na
atividade privada, familiar, social, e até econômica e política dos homens,
para que todos os que são chamados filhos de Deus possam mais facilmente
conseguir o seu próprio fim.
32. Dessa
maneira a ação particular e o esforço ascético dirigido à purificação da alma
estimulam as energias dos fiéis e os preparam a participar com melhores
disposições do augusto sacrifício do altar e a receber os sacramentos com maior
fruto, e a celebrar os sagrados ritos, de modo a torná-los mais animados e
formados para a oração e para a abnegação cristã para cooperar ativamente nas
inspirações e nos convites da graça, para imitar cada dia mais a virtude do
Redentor, não somente para vantagem própria mas ainda para a vantagem de todo o
corpo da Igreja, no qual todo o bem que se cumpre provém da virtude da Cabeça e
redunda em benefício dos membros.
33. Por
isso na vida espiritual nenhuma oposição ou repugnância pode haver entre a ação
divina que infunde a graça nas almas para continuar a nossa redenção e a
operosa colaboração do homem que não deve tornar vão o dom de Deus; (36) entre
a eficácia do rito externo dos sacramentos que provém do seu intrínseco valor (ex
opere operato), e o mérito de quem os administra ou recebe (opus
operantis); entre as orações privadas e as preces públicas; entre a ética e
a contemplação; entre a vida ascética e a piedade litúrgica; entre o poder de
jurisdição e de legítimo magistério e o poder eminentemente sacerdotal que se
exercita no próprio sagrado ministério.
34. Por
graves motivos a Igreja prescreve aos ministros do altar e aos religiosos,
precisamente porque são destinados de modo particular a realizar as funções
litúrgicas do sacrifício e do louvor divino, que, nos tempos estabelecidos,
atendam à meditação piedosa, ao exame diligente e à emenda da consciência e aos
outros exercícios espirituais.(37) Sem dúvida, a prece litúrgica, sendo pública
oração da ínclita esposa de Jesus Cristo, tem maior dignidade do que a das orações
privadas; mas esta superioridade não quer dizer que entre estes dois gêneros de
oração haja contraste ou oposição. Ambas as duas se fundem e se harmonizam
porque animadas de um único espírito: "tudo e em todos, Cristo" (38)
e tendem ao mesmo fim: até que Cristo seja formado em nós.(39)
III. A
liturgia é regulada pela hierarquia eclesiástica
35. Para
melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu
caráter importante. A Igreja
é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia próprias. Se
todos os membros do corpo místico participam dos mesmos bens e tendem aos
mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são habilitados a cumprir as
mesmas ações. O divino Redentor estabeleceu, com efeito, o seu reino sob fundamentos
da ordem sagrada, que é reflexo da hierarquia celeste.
36. Somente aos
apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a
imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como
representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo,
assim representam o povo diante de Deus. Esse sacerdócio não vem transmitido
nem por herança, nem por descendência carnal, nem resulta da emanação da
comunidade cristã ou de delegação popular. Antes de representar o povo, perante
Deus, o sacerdote representa o divino Redentor, e porque Jesus Cristo é a
cabeça daquele corpo do qual os cristãos são membros, ele representa Deus junto
do povo. O poder que lhe foi conferido não tem, pois, nada de humano em sua natureza;
é sobrenatural e vem de Deus: "assim como o Pai me enviou, assim eu vos
envio:..' ;(40) "quem vos ouve, a mim ouve..."; (41)
"percorrendo todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura; quem crer e
for batizado, será salvo".(42)
37. Por
isso o sacerdócio externo e visível de Jesus Cristo se transmite na Igreja não
de modo universal, genérico e indeterminado, mas é conferido a indivíduos
eleitos, com a geração espiritual da ordem, um dos sete sacramentos, o qual não
somente confere uma graça particular, própria deste estado e deste ofício, mas
ainda um caráter indelével que configura os ministros sagrados a Jesus Cristo
sacerdote, demonstrando-os capazes de cumprir aqueles atos legítimos de
religião com os quais os homens são santificados e Deus é glorificado, segundo
as exigências da economia sobrenatural.
38. Com
efeito, como o lavacro do batismo distingue os cristãos e os separa dos outros
que não foram lavados na água purificadora e não são membros de Cristo, assim o
sacramento da ordem distingue os sacerdotes de todos os outros cristãos não
consagrados, porque somente eles, por vocação sobrenatural, foram introduzidos
no augusto ministério que os destina aos sagrados altares e os constituem
instrumentos divinos por meio dos quais se participa da vida sobrenatural com o
corpo místico de Jesus Cristo. Além disso, como já dissemos, somente estes são
marcados com caráter indelével que os configura ao sacerdócio de Cristo e
somente as suas mãos são consagradas "para que seja abençoado tudo o que abençoam
e tudo o que consagram seja consagrado e santificado em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo".(43) Aos sacerdotes, pois, deve recorrer quem quer que
deseje viver em Cristo, a fim de receber deles o conforto, o alimento da vida
espiritual, o remédio salutar que o curará e o fortificará para que possa
felizmente ressurgir da perdição e do abismo dos vícios; deles, enfim, receberá
a bênção que consagra a família e por eles o último suspiro da vida mortal será
dirigido ao ingresso na beatitude eterna.
39. Já
que a sagrada liturgia é exercida sobretudo pelos sacerdotes em nome da Igreja,
a sua organização, o seu regulamento e a sua forma não podem depender senão da
autoridade da Igreja. Esta é não somente uma conseqüência da natureza mesma do
culto cristão, mas é ainda confirmada pelo testemunho da história.
40. Esse
direito inconcusso da hierarquia eclesiástica é provado ainda pelo fato de ter
a sagrada liturgia estreita ligação com aqueles princípios doutrinários que a
Igreja propõe como fazendo parte de verdades certíssimas, e por isso deve
conformar-se aos ditames da fé católica proclamados pela autoridade do supremo
magistério para proteger a integridade da religião revelada por Deus.
41. A
esse propósito, veneráveis irmãos, fazemos questão de pôr em sua justa luz uma
coisa que pensamos não ignorais, isto é, o erro daqueles que pretenderam que a
sagrada liturgia fosse como uma experimentação do dogma, de modo que, se uma
destas verdades tivesse, através dos ritos da sagrada liturgia, trazido frutos
de piedade e de santidade, a Igreja deveria aprová-la, e repudiá-la em caso
contrário. Donde o princípio: "a lei da oração é lei da fé".
42. Não
é, porém, assim que ensina e manda a Igreja. O culto que ela rende a Deus é,
como de modo breve e claro diz santo Agostinho, uma contínua profissão de fé
católica, e um exercício da esperança e da caridade: "a Deus se deve
honrar com a fé, a esperança e a caridade".(44) Na sagrada liturgia
fazemos explícita profissão de fé não somente com a celebração dos divinos mistérios,
com o cumprimento do sacrifício e a administração dos sacramentos, mas ainda
recitando e cantando o Símbolo da fé, que é como o distintivo e a téssera dos
cristãos, com a leitura de outros documentos e das sagradas letras escritas por
inspiração do Espírito Santo. Toda a liturgia tem, pois, um conteúdo de fé
católica enquanto atesta publicamente a fé da Igreja.
43. Por
esse motivo, sempre que se tratou de definir um dogma, os sumos pontífices e os
concílios, abeberando-se das chamadas "fontes teológicas", não raramente
tiraram argumentos também dessa sagrada disciplina, como fez, por exemplo, o
nosso predecessor de imortal memória Pio IX quando definiu a imaculada
conceição de Maria virgem. Do mesmo modo, a Igreja e os santos padres, quando
se discutia uma verdade controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir
luz também aos ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou
conhecida e venerada a sentença: "A lei da oração estabeleça a lei da
fé".(45) A liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido
absoluto e por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma
profissão da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da
Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para
esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos distinguir e
determinar, de modo geral e absoluto, as relações que intercorrem entre fé e
liturgia, podemos afirmar com razão que "a lei da fé deve estabelecer a
lei da oração". O mesmo deve dizer-se ainda quando se trata das outras
virtudes teológicas: "na... fé, na esperança e na caridade oramos sempre
com desejo contínuo"(46).
IV.
Progresso e desenvolvimento da liturgia
44. A
hierarquia eclesiástica tem usado sempre desse seu direito em matéria
litúrgica, preparando e ordenando o culto divino e enriquecendo-o sempre de
novo esplendor e decoro para glória de Deus e vantagem dos féis. Não duvidou,
além disto - salva a substância do sacrifício eucarístico e dos sacramentos -
em mudar aquilo que não julgava adaptado, em acrescentar o que parecia
contribuir melhor para a glória de Jesus Cristo e da augusta Trindade, para
instrução e estímulo salutar do povo cristão.(47)
45. A
sagrada liturgia, com efeito, consta de elementos humanos e de elementos
divinos. Esses, tendo sido instituídos pelo divino Redentor, não podem,
evidentemente, ser mudados pelos homens; aqueles, ao contrário, podem sofrer
várias modificações, aprovadas pela hierarquia sagrada, assistida do Espírito
Santo, segundo as exigências dos tempos, das coisas e das almas. Disso se
origina a estupenda variedade dos ritos orientais e ocidentais; o
desenvolvimento progressivo de hábitos particulares religiosos e práticas de
piedade inicialmente apenas acenadas; disso advém que muitas vezes são
repristinadas e renovadas pias instituições obliteradas pelo tempo. Tudo isso
testemunha a vida da intemerata esposa de Jesus Cristo durante tantos séculos;
exprime a linguagem usada por ela para manifestar ao Esposo divino a fé e o
amor inexauríveis dela e das gentes que lhe foram confiadas; demonstra a sua
sábia pedagogia para estimular e incrementar nos crentes "o sentido de
Cristo".
46. Em
verdade, não poucas são as causas pelas quais se explica e desenvolve o
progresso da sagrada liturgia durante a longa e gloriosa história da Igreja. Assim,
por exemplo, uma formação mais certa e ampla da doutrina católica sobre a
encarnação do Verbo de Deus, sobre os sacramentos, sobre o sacrifício
eucarístico, e sobre a virgem Maria Mãe de Deus, contribuiu para a adoção de
novos ritos, por meio dos quais a luz, mais esplendidamente brilhante na
declaração do magistério eclesiástico, veio a refletir melhor e mais claramente
nas ações litúrgicas para unir-se com maior facilidade à mente e ao coração do
povo cristão.
47. O
ulterior desenvolvimento da disciplina eclesiástica na administração dos
sacramentos, por exemplo, do sacramento da penitência, a instituição e depois o
desaparecimento do catecumenato, a comunhão eucarística sob uma só espécie na
Igreja latina, contribuíram não pouco para a modificação dos antigos ritos e a
gradual adoção de novos e mais condizentes com as disposições disciplinares
mudadas.
48. Para
essa evolução e para essas mudanças contribuíram notavelmente as iniciativas e
as práticas piedosas não estritamente ligadas à sagrada liturgia, nascidas em
épocas sucessivas por admirável disposição de Deus e assim difundidas no povo,
como, por exemplo, o culto mais amplo e mais fervoroso da divina eucaristia, da
acerbíssima paixão do nosso Redentor, do sacratíssimo coração de Jesus, da
virgem Mãe de Deus e do seu puríssimo esposo.
49. Entre
as circunstâncias exteriores, tiveram a sua parte as peregrinações públicas de
devoção aos sepulcros dos mártires, a observância de jejuns particulares
instituídos para o mesmo fim, as procissões estacionais de penitência que se
celebravam nesta excelsa cidade e às quais, não raro, comparecia o próprio sumo
pontífice.
50.
Também facilmente se compreende como o progresso das belas artes, especialmente
da arquitetura, da pintura e da música tenham influído não pouco sobre a
determinação e a diversa conformação dos elementos exteriores da sagrada
liturgia.
51. Do
mesmo direito seu em matéria litúrgica serviu-se a Igreja para tutelar a
santidade do culto contra os abusos temerariamente introduzidos por indivíduos
e por Igrejas particulares. Assim aconteceu que nosso predecessor de imortal
memória, Sixto V, vendo multiplicar-se os usos e costumes deste gênero durante
o século XVI e as iniciativas privadas porem em perigo a integridade da fé e da
piedade, com grande vantagem dos hereges e da propaganda do seu erro, instituiu
em 1588, para defender os legítimos ritos da Igreja e impedir as infiltrações
espúrias, a Congregação dos ritos,(48) órgão a que compete ainda hoje ordenar e
prescrever, com cuidado vigilante, tudo o que diz respeito à sagrada
liturgia.(49)
V. Tal
progresso não pode ser deixado ao arbítrio dos particulares
52. Por
isso, somente o sumo pontífice tem o direito de reconhecer e estabelecer
quaisquer praxes do culto, de introduzir e aprovar novos ritos, e mudar aqueles
que julgar devem ser mudados;(50) os bispos têm o direito e o dever de vigiar
diligentemente para que as prescrições dos sagrados cânones relativamente ao
culto divino sejam pontualmente observadas.(51) Não é possível deixar ao
arbítrio dos particulares, ainda que sejam membros do clero, as coisas santas e
venerandas relativas à vida religiosa da comunidade cristã, ao exercício do
sacerdócio de Jesus Cristo e ao culto divino, à honra que se deve à santíssima
Trindade, ao Verbo encarnado, à sua augusta Mãe e aos outros santo, e à
salvação dos homens; pelo mesmo motivo a ninguém é permitido regular neste
campo ações externas que têm nexo íntimo com a disciplina eclesiástica, com a
ordem, a unidade, a concórdia do corpo místico e, não raro, com a própria
integridade da fé católica. Certamente, a Igreja é um organismo vivo e, por
isso, ainda no que diz respeito à sagrada liturgia, firme a integridade de seu
ensinamento, cresce e se desenvolve, adaptando-se e conformando-se às
circunstâncias e às exigências que se verificam no correr dos tempos; deve-se,
todavia, reprovar severamente a temerária audácia daqueles que introduzem de
propósito novos costumes litúrgicos ou fazem reviver ritos já caídos em desuso
e que não concordam com as leis e as rubricas vigentes. Assim, não sem grande
pesar, sabemos que isso acontece não somente em coisas de pouca monta, mas
ainda de gravíssima importância; não falta, com efeito, quem use a língua
vulgar na celebração do sacrifício eucarístico, quem transfira para outros
tempos festas fixadas já por razões ponderáveis; quem exclua dos legítimos
livros da oração pública os escritos sagrados do Antigo Testamento,
reputando-os pouco adaptados e pouco oportunos para os nossos tempos.
53. O uso
da língua latina vigente em grande parte da Igreja, é um caro e nobre sinal de
unidade e um eficaz remédio contra toda corruptela da pura doutrina. Em muitos
ritos o uso da língua vulgar pode ser assaz útil para o povo, mas somente a Sé
Apostólica tem o poder de concedê-lo, e por isso, neste campo, nada é lícito
fazer sem o seu juízo e a sua aprovação, porque, como havíamos dito, a
regulamentação da sagrada liturgia é de sua exclusiva competência.
54. Do
mesmo modo se devem julgar os esforços de alguns para revigorar certos antigos
ritos e cerimônias. A liturgia da época antiga é, sem dúvida, digna de
veneração, mas o uso antigo não é, por motivo somente de sua antiguidade, o
melhor, seja em si mesmo, seja em relação aos tempos posteriores e às novas
condições verificadas. Os ritos litúrgicos mais recentes também são
respeitáveis, pois que foram estabelecidos por influxo do Espírito Santo que
está com a Igreja até à consumação dos séculos, (52) e são meios dos quais se
serve a ínclita esposa de Jesus Cristo para estimular e conseguir a santidade
dos homens.
55. É
certamente coisa sábia e muito louvável retornar com a inteligência e com a
alma às fontes da sagrada liturgia, porque o seu estudo, reportando-se às
origens, auxilia não pouco a compreender o significado das festas e a penetrar
com maior profundidade e agudeza o sentido das cerimônias, mas não é certamente
coisa tão sábia e louvável reduzir tudo e de qualquer modo ao antigo. Assim,
para dar um exemplo, está fora do caminho quem quer restituir ao altar a antiga
forma de mesa; quem quer eliminar dos paramentos litúrgicos a cor negra; quem
quer excluir dos templos as imagens e as estátuas sagradas; quem quer suprimir
na representação do Redentor crucificado as dores acérrimas por ele sofridas;
quem repudia e reprova o canto polifônico, ainda quando conforme às normas
emanadas da santa sé.
56. Como,
em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da doutrina cristã
compostas e decretadas com grande vantagem em época mais recente da Igreja,
inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para voltar às antigas fórmulas dos
primeiros concílios, ou repudiar as leis vigentes para voltar às prescrições
das antigas fontes do direito canônico; assim, quando se trata da sagrada
liturgia, não estaria animado de zelo reto e inteligente aquele que quisesse
voltar aos antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por
disposição da divina Providência e por mudança de circunstâncias.
57. Este
modo de pensar e de proceder, com efeito, faz reviver o excessivo e insano
arqueologismo suscitado pelo ilegítimo concílio de Pistóia, e se esforça em
revigorar os múltiplos erros que foram as bases daquele conciliábulo e os que
se lhe seguiram com grande dano das almas, e que a Igreja - guarda vigilante do
"depósito da fé" confïado pelo seu divino Fundador - condenou com
todo o direito.(53) De fato, deploráveis propósitos e iniciativas tendem a
paralisar a ação santificadora com a qual a sagrada liturgia orienta
salutarmente ao Pai celeste os filhos de adoção.
58. Tudo,
pois, seja feito em indispensável união com a hierarquia eclesiástica. Ninguém
se arrogue o direito de ser lei para si mesmo e de impô-la aos outros por sua
vontade. Somente o sumo pontífice, na qualidade de sucessor de Pedro, ao qual o
divino Redentor confiou o rebanho universal, (54) e juntamente os bispos, que
sob a dependência da Sé Apostólica "o Espírito Santo colocou para reger a
Igreja de Deus",(55) têm o direito e o dever de governar o povo cristão.
Por isso, veneráveis irmãos, toda vez que defendeis a vossa autoridade -
oportunamente, ainda que com severidade salutar não somente cumpris o vosso
dever, mas defendeis a própria vontade do Fundador da Igreja.
SEGUNDA
PARTE
O CULTO
EUCARÍSTICO
I.
Natureza do sacrifício eucarístico
59. O
mistério da santíssima eucaristia, instituída pelo sumo sacerdote Jesus Cristo
e, por vontade sua, perpetuamente renovada pelos seus ministros, é como a
súmula e o centro da religião cristã. Em se tratando do ápice da sagrada
liturgia, julgamos oportuno, veneráveis irmãos, deter-nos um pouco, chamando a
vossa atenção para esta importantíssima temática.
60. O
Cristo Senhor, "sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque"
(56) "tendo amado os seus que estavam no mundo",(57) "na última
ceia, na noite em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um
sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual representasse o
sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só vez, e para que a sua
lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos fosse aplicada sua salutar
virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos... ofereceu a Deus Pai o seu
corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e deu-os aos apóstolos
então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob essas mesmas
espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no sacerdócio,
que o oferecessem".(58)
61. O
augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração da paixão
e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício, no qual,
imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a
cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima. "Uma... e
idêntica é a vítima: aquele mesmo, que agora oferece pelo ministério dos
sacerdotes, se ofereceu então sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer
a oferta".(59)
62.
Idêntico, pois, é o sacerdote, Jesus Cristo, cuja sagrada pessoa é representada
pelo seu ministro. Este, pela consagração sacerdotal recebida, assemelha-se ao
sumo Sacerdote e tem o poder de agir em virtude e na pessoa do próprio
Cristo;(60) por isso, com sua ação sacerdotal, de certo modo, "empresta a
Cristo a sua língua, e lhe oferece a sua mão".(61)
63.
Também idêntica é a vítima, isto é, o divino Redentor, segundo a sua humana
natureza e na realidade do seu corpo e do seu sangue. Diferente, porém, é o
modo pelo qual Cristo é oferecido. Na cruz, com efeito, ele se ofereceu todo a
Deus com os seus sofrimentos, e a imolação da vítima foi realizada por meio de
morte cruenta livremente sofrida; no altar, ao invés, por causa do estado
glorioso de sua natureza humana, "a morte não tem mais domínio sobre
ele"(62) e, por conseguinte, não é possível a efusão do sangue; mas a
divina sabedoria encontrou o modo admirável de tornar manifesto o sacrifício de
nosso Redentor com sinais exteriores que são símbolos de morte. Já que, por
meio da transubstanciação do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo,
têm-se realmente presentes o seu corpo e o seu sangue; as espécies
eucarísticas, sob as quais está presente, simbolizam a cruenta separação do
corpo e do sangue. Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário
repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos
distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em estado de
vítima.
64.
Idênticos, finalmente, são os fins, dos quais o primeiro é a glorificação de
Deus. Do nascimento à morte, Jesus Cristo foi abrasado pelo zelo da glória
divina e, da cruz, a oferenda do sangue chegou ao céu em odor de suavidade. E
porque este cântico não havia de cessar, no sacrifício eucarístico os membros
se unem à Cabeça divina e com ela, com os anjos e os arcanjos, cantam a Deus
louvores perenes, (63) dando ao Pai onipotente toda honra e glória.(64)
65. O
segundo fim é a ação de graças a Deus. O divino Redentor somente, como Filho de
predileção do Eterno Pai de quem conhecia o imenso amor, pôde entoar-lhe um
digno cântico de ação de graças. A isso visou e isso desejou "rendendo
graças"(65) na última ceia, e não cessou de fazê-lo na cruz, não cessa de
realizá-lo no augusto sacrifício do altar, cujo significado é justamente a ação
de graças ou eucaristia; e porque isso é "verdadeiramente digno e justo e
salutar".(66)
66. O
terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo,
podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano;
ele, pois, quis imolar-se na cruz, "propiciação pelos nossos pecados, e
não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo".(67) Nos
altares se oferece igualmente cada dia pela nossa redenção, afim de que,
libertados da eterna condenação, sejamos acolhidos no rebanho dos eleitos. E
isso não somente por nós que estamos nesta vida mortal, mas ainda "por
todos aqueles que repousam em Cristo, os quais nos precederam com o sinal da
fé, e dormem o sono da paz",(68) pois, quer vivamos, quer morramos,
"não nos separamos do único Cristo".(69)
67. O
quarto fim é a impetração. Filho pródigo, o homem malbaratou e dissipou todos
os bens recebidos do Pai celeste, por isso está reduzido à suprema miséria e
inanição; da cruz, porém, Cristo, "tendo em alta voz e com lágrimas
oferecido orações e súplicas... foi ouvido pela sua piedade",(70) e nos sagrados
altares exercita a mesma mediação eficaz; a fim de que sejamos cumulados de
toda bênção e graça.
68.
Compreende-se, portanto, facilmente, porque o sacrossanto concílio de Trento
afirma que com o sacrifício eucarístico nos é aplicada a salutar virtude da
cruz para a remissão dos nossos pecados cotidianos.(71)
69.
Também o apóstolo das gentes, proclamando a superabundante plenitude e
perfeição do sacrifício da cruz, declarou que Cristo com uma só oblação, tornou
perfeitos para sempre os santificados.(72) Os infinitos e imensos méritos desse
sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à universalidade dos
homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é
Deus Homem; porque a sua imolação como a sua obediência à vontade do Eterno Pai
foi perfeitíssima, e porque foi como Cabeça do gênero humano, que ele quis
morrer. "Considera como foi tratado o nosso resgate: Cristo pende do
madeiro; vê a que preço comprou; ...derramou o seu sangue, comprou com o seu
sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do unigênito Filho de
Deus... Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a aquisição é todo o
mundo".(73)
70. Esse
resgate, porém, não teve logo o seu pleno efeito: é necessário que, depois de
haver resgatado o mundo com o elevadíssimo preço de si mesmo, Cristo entre na
real e efetiva posse das almas. Conseqüentemente, a fim de que, com o
beneplácito de Deus, se cumpra para todos os indivíduos e para todas as
gerações até o fim dos séculos, a sua redenção e salvação, é absolutamente necessário
que cada um tenha vital contato com o sacrifício da cruz, e assim os méritos
que dele derivam lhe sejam transmitidos e aplicados. Pode-se dizer que Cristo
construiu no Calvário uma piscina de purificação e de salvação e a encheu com o
sangue por ele derramado; mas se os homens não mergulham nas suas ondas e aí
não lavam as manchas de sua iniqüidade, não podem certamente ser purificados e
salvos.
71. A fim
de que, pois, os pecadores individualmente se purifiquem no sangue do Cordeiro,
é necessária a colaboração dos fiéis. Se bem que, falando em geral, Cristo haja
reconciliado com o Pai por meio da sua morte cruenta todo o gênero humano, quis
todavia que todos se aproximassem e fossem conduzidos à cruz por meio dos
sacramentos e do sacrifício da eucaristia, para poderem conseguir os frutos
salutares por ele granjeados na cruz. Com esta atual e pessoal participação
assim como os membros se configuram cada dia mais à sua Cabeça divina, assim
também a salvação que vem da Cabeça flui para os membros, de modo que cada um
de nós pode repetir as palavras de são Paulo: "Estou crucificado com
Cristo na cruz, e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim".(74) Como
realmente, em outra ocasião, de propósito e concisamente dissemos, Jesus Cristo
enquanto morria na cruz, deu à sua Igreja, sem nenhuma cooperação da parte
dela, o imenso tesouro da Redenção; quando, ao invés, se trata de distribuir
tal tesouro, não só participa com sua esposa incontaminada desta obra de
santificação, mas deseja que tal atividade jorre, de certo modo, por ação
dela.(75)
72. O
augusto sacrifício do altar é insigne instrumento para aos crentes distribuir
os méritos derivados da cruz do divino Redentor: "toda vez que se oferece
este sacrifício, cumpre-se a obra da nossa redenção".(76) Isso, porém,
longe de diminuir a dignidade do sacrifício cruento, dele faz ressaltar a
grandeza, como afirma o concílio de Trento,"(77) e lhe proclama a
necessidade. Renovado cada dia, admoesta-nos que não há salvação fora da cruz
de nosso Senhor Jesus Cristo;(78) que Deus quer a continuação deste sacrifício
"do surgir ao pôr-do-sol", (79) para que não cesse jamais o hino de
glorificação e de ação de graças que os homens devem ao Criador, visto que têm
necessidade de seu contínuo auxílio e do sangue do Redentor para redimir os
pecados que ofendem a sua justiça.
II.
Participação dos fiéis no sacrifício eucarístico
73. É
necessário, pois, veneráveis irmãos, que todos os fiéis tenham por seu
principal dever e suma dignidade participar do santo sacrifício eucarístico,
não com assistência passiva, negligente e distraída, mas com tal empenho e
fervor que os ponha em contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o
Apóstolo: "Tende em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo
experimentou",(80) oferecendo com ele e por ele, santificando-se com
ele.
74. É bem
verdade que Jesus Cristo é sacerdote, mas não para si mesmo, e sim para nós,
apresentando ao Eterno Pai os votos e sentimentos religiosos de todo o gênero
humano; Jesus é vítima, mas por nós, substituindo-se ao homem pecador; ora, o
dito do Apóstolo: "Alimentai em vós os mesmos sentimentos que existiram em
Jesus Cristo" exige de todos os cristãos que reproduzam em si, enquanto
está em poder do homem, o mesmo estado de alma que tinha o divino Redentor
quando fazia o sacrifício de si mesmo, a humilde submissão do espírito, isto é,
a adoração, a honra, o louvor e a ação de graças à majestade suprema de Deus;
requer, além disso, que reproduzam em si mesmos as condições da vítima: a
abnegação de si conforme os preceitos do evangelho, o voluntário e espontâneo
exercício da penitência, a dor e a expiação dos próprios pecados. Exige, em uma
palavra, a nossa morte mística na cruz com Cristo, de modo que possamos dizer
com Paulo: "Estou crucificado com Cristo na cruz".(81)
75. É necessário,
veneráveis irmãos, explicar claramente a vosso rebanho como o fato de os fiéis
tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que eles gozem de
poderes sacerdotais. Há, de fato, em nossos dias, alguns que, avizinhando-se de
erros já condenados,(82) ensinam que em o Novo Testamento se conhece apenas um
sacerdócio pertencente a todos os batizados, e que o preceito dado por Jesus
aos apóstolos na última ceia - fazer o que ele havia feito - se refere
diretamente a toda a Igreja dos cristãos e só depois é que foi introduzido o
sacerdócio hierárquico. Sustentam, por isso, que só o povo goza de verdadeiro
poder sacerdotal, enquanto o sacerdote age unicamente por ofício a ele confiado
pela comunidade. Afirmam, em conseqüência, que o sacrifício eucarístico é uma
verdadeira e própria "concelebração", e que é melhor que os
sacerdotes "concelebrem" junto com o povo presente, do que, na
ausência destes, ofereçam privadamente o sacrifício.
76. É
inútil explicar quanto esses capciosos erros estejam em contraste com as
verdades acima demonstradas, quando falamos do lugar que compete ao sacerdote
no corpo místico de Jesus. Recordemos apenas que o sacerdote faz as vezes do
povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça
de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar
como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo.(83) O povo, ao
invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem
sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos
poderes sacerdotais.
1. Os
fiéis oferecem junto com o sacerdote
77. Tudo
isso consta da fé verdadeira; mas deve-se, além disso, afirmar que também os
fiéis oferecem a vítima divina, sob um aspecto diverso. Já o
declararam abertamente alguns dos nossos predecessores e doutores da Igreja.
"Não somente - assim afirmava Inocêncio III, de imortal memória - oferecem
os sacerdotes, mas ainda todos os fiéis; pois isto que em particular se cumpre
pelo ministério dos sacerdotes, cumpre-se universalmente por voto dos
fiéis".(84) E apraz-nos citar ao menos um dos muitos textos de são Roberto
Belarmino a esse propósito: "O sacrifício - diz ele - é oferecido
principalmente na pessoa de Cristo. Por isso a oblação que segue à consagração
atesta que toda a Igreja consente na oblação feita por Cristo e oferece
juntamente com ele".(85)
78. Com
clareza não menor, os ritos e as orações do sacrifício eucarístico significam e
demonstram que a oblação da vítima é feita pelos sacerdotes em união com o
povo. De fato, não somente o sagrado ministro, depois da oferta do pão e do
vinho, voltado para o povo diz explicitamente: "Orai, irmãos, para que o
meu e o vosso sacrifício sejam aceitos junto a Deus-Pai onipotente",(86)
mas ainda as orações com as quais é oferecida a vítima divina são, além do
mais, ditas no plural, e nelas se indica que também o povo toma parte como
ofertante neste augusto sacrifício. Diz-se, por exemplo: "Pelos quais nós
te oferecemos, e que te oferecem ainda eles... Por isso te suplicamos, ó
Senhor, aceitar aplacado esta oferta dos teus servos e de toda a tua família...
Nós, teus servos, como ainda o teu povo santo, oferecemos à tua excelsa
majestade os dons e dádivas que tu mesmo nos deste, a hóstia pura, a hóstia
santa, a hóstia imaculada".(87)
79. Nem é
de admirar que os fiéis sejam elevados a uma tal dignidade. Com a água do
batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo
místico de Cristo sacerdote, e, por meio do "caráter" que se imprime
nas suas almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo
condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo.
80. Na
Igreja católica, a razão humana iluminada pela fé sempre se esforçou por ter a
maior consciência possível das coisas divinas; por isso é natural que também o
povo cristão pergunte piamente em que sentido se diz no Cânon do sacrifício
eucarístico que também ele o oferece. Para satisfazer esse piedoso desejo
apraz-nos tratar aqui do assunto com clareza e concisão.
81. Há,
acima de tudo, razões muito remotas: freqüentemente acontece que os fiéis,
assistindo aos sagrados ritos, unam alternadamente as suas orações às orações
do sacerdote; alguma vez; ainda, acontece - isto antigamente se verificava com
maior freqüência - que ofereçam ao ministro do altar o pão e o vinho para que
se tornem corpo e sangue de Cristo; e, enfim, porque, com as esmolas, fazem com
que o sacerdote ofereça por eles a vítima divina.
82. Mas
há ainda uma razão mais profunda para que se possa dizer que todos os cristãos
e especialmente aqueles que assistem ao altar realizem a oferta.
83. Para
não dar ensejo a erros perigosos neste importantíssimo argumento, é necessário
precisar com exatidão o significado do termo "oferta". A imolação
incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da
consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só
pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa
a pessoa dos fiéis. Colocando, porém, no altar a vítima divina, o sacerdote a
apresenta a Deus Pai como oblação à glória da SS. Trindade e para o bem de todas
as almas. Dessa oblação propriamente dita os fiéis participam do modo que lhes
é possível e por um duplo motivo: porque oferecem o sacrifício não somente
pelas mãos do sacerdote, mas, de certo modo ainda, junto com ele; e ainda
porque com essa participação também a oferta feita pelo povo pertence ao culto
litúrgico. Que os fiéis oferecem o sacrifício por meio do sacerdote, é claro,
pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece
em nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a
Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima. Quando, pois, se diz
que o povo oferece juntamente com o sacerdote, não se afirma que os membros da
Igreja de maneira idêntica à do próprio sacerdote realizam o rito litúrgico
visível - o que pertence somente ao ministro de Deus para isso designado - mas
sim que une os seus votos de louvor, de impetração, de expiação e a sua ação de
graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio sumo pontífice, a fim de que
sejam apresentados a Deus Pai na própria oblação da vítima, embora com o rito
externo do sacerdote. É necessário, com efeito, que o rito externo do
sacrifício manifeste, por sua natureza, o culto interno; ora, o sacrifício da
nova Lei significa aquele obséquio supremo com o qual o próprio principal
ofertante, que é Cristo, e com ele e por ele todos os seus membros místicos,
honram devidamente a Deus.
84. Com
grande alegria da alma fomos informados de que essa doutrina, especialmente nos
últimos tempos, pelo intenso estudo da disciplina litúrgica da parte de muitos,
foi posta em sua luz; mas não podemos deixar de deplorar vivamente os exageros
e os desvios da verdade, que não concordam com os genuínos preceitos da Igreja.
85.
Alguns, com efeito, reprovam de todo as missas que se celebram privadamente e
sem a assistência do povo, como se se desviassem da forma primitiva do
sacrifício; nem falta quem afirme que os sacerdotes não possam oferecer a
divina vítima ao mesmo tempo em muitos altares, porque desse modo dissociam a comunidade
e põem em perigo a unidade; também não falta quem chegue ao ponto de crêr
necessária a confirmação e a ratificação do sacrifício por parte do povo, para
que possa ter sua força e eficácia.
86.
Erroneamente, nesse caso, se faz apelo à índole social do sacrifício
eucarístico. Toda vez, com efeito, que o sacerdote repete o que fez o divino
Redentor na última ceia, o sacrifício é realmente consumado e tem sempre e em
qualquer lugar necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função
pública e social, enquanto o ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos,
dos quais o divino Redentor é Cabeça, e oferece a Deus pela santa Igreja
católica e pelos vivos e defuntos.(88) E isso se verifica certamente, quer
assistam os fiéis - e desejamos e recomendamos que estejam presentes
numerosíssimos e fervorosíssimos - quer não assistam, não sendo de nenhum modo
requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro.
87. Se,
pois, daquilo que foi dito resulta claramente que o santo sacrifício da missa é
oferecido validamente em nome de Cristo e da Igreja, nem fica privado dos seus
frutos sociais, mesmo quando celebrado sem assistência de nenhum acólito
todavia, pela dignidade deste mistério, queremos e insistimos, como sempre quis
a madre Igreja, que nenhum sacerdote se aproxime do altar sem ter quem o ajude
e lhe responda, como prescreve o cân. 813.
2. Os
féis oferecem também a si mesmos como vítimas
88. Para
que, pois, a oblação, com a qual neste sacrifício os fiéis oferecem a vítima
divina ao Pai celeste, tenha o seu efeito pleno, requer-se ainda outra coisa: é
necessário que eles se imolem a si mesmos como vítimas.
89. Essa
imolação não se limita somente ao sacrifício litúrgico. Quer, com efeito, o
príncipe dos apóstolos que pelo fato mesmo de sermos edifïcados como pedras
vivas sobre Cristo, possamos como "sacerdócio santo, oferecer vítimas
espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo"; (89) e Paulo apóstolo,
sem nenhuma distinção de tempo, exorta os cristãos com as seguintes palavras: "Eu
vos conjuro, ó irmãos, que ofereçais os vossos corpos como vítima viva, santa,
agradável a Deus, como vosso culto racional."(90) Mas quando, sobretudo,
os féis participam da ação litúrgica com tanta piedade e atenção que se pode
verdadeiramente dizer deles: "dos quais te é conhecida a fé e a
devoção"(91) não é possível que a fé de cada um deles não se torne mais
alegremente operante por meio da caridade, nem se revigore e brilhe a piedade e
não se consagrem todos à conquista da glória divina, desejando com ardor tornarem-se
intimamente semelhantes a Jesus Cristo que sofreu acerbas dores, oferecendo-se
ao sumo Sacerdote e por meio dele como hóstia espiritual.
90. Isso
ensinam ainda as exortações que o bispo endereça em nome da Igreja aos
ministros sagrados no dia da sua ordenação: "Compenetrai-vos daquilo que
fazeis, imitai o que tratais, de modo que, ao celebrardes o mistério da morte
do Senhor, procureis mortificar os vossos membros de seus vícios e da
concupiscência".(92) E quase do mesmo modo nos livros litúrgicos são
exortados os cristãos que se aproximam do altar a participarem dos sagrados
mistérios: "esteja sobre... este altar o culto da inocência, nele se imole
a soberba, nele se apague a ira, se debele a luxúria e toda concupiscência,
ofereça-se ao invés de rolas o sacrifício da castidade e em lugar de pombas o
sacrifício da inocência".(93) Assistindo, pois, ao altar, devemos
transformar a nossa alma de modo que se apague radicalmente todo o pecado que
está nela, e com toda diligência se restaure e reforce tudo aquilo que,
mediante Cristo, dá a vida sobrenatural: e assim nos tornemos, junto com a
hóstia imaculada, uma vítima agradável a Deus Pai.
91. A
Igreja se esforça com os preceitos da sagrada liturgia por levar a efeito, da
maneira mais perfeita, este santíssimo propósito. A isso visam não somente as
leituras, as homílias e as outras exortações dos ministros sagrados, e todo o
ciclo dos mistérios que nos são recordados durante o ano, mas também as vestes,
os ritos sagrados e seu aparato exterior que tem por fim "fazer pensar na
majestade de tão grande sacrifício, excitar a mente dos fnéis, por meio dos
sinais visíveis de piedade e de religião, à contemplação das altíssimas"
coisas encerradas neste sacrifício".(94)
92. Todos
os elementos da liturgia tendem, pois, a reproduzir em nossa alma a imagem do
divino Redentor através do mistério da cruz, segundo a palavra do apóstolo das
gentes: "Estou cravado com Cristo na cruz e vivo, não mais eu, mas é
Cristo que vive em mim".(95) Por isso nos tornamos hóstia junto com Cristo
para a maior glória do Pai.
93. A
isso, pois, devem dirigir e elevar a sua alma os féis que oferecem a vítima
divina no sacrifício eucarístico. Se, com efeito, como escreve santo Agostinho,
sobre a mesa do Senhor é posto o nosso mistério, isto é, o próprio Cristo
Senhor, (96) enquanto a cabeça é símbolo daquela união em virtude da qual somos
o corpo de Cristo(97) e membros do seu corpo;(98) se são Roberto Belarmino
ensina, segundo o pensamento do doutor de Hipona, que no sacrifício do altar
está significado o sacrifício geral com o qual todo o corpo místico de Cristo,
isto é, toda a cidade redimida, é oferecida a Deus por meio de Cristo
grão-sacerdote, (99) nada se pode encontrar de mais reto e de mais justo que
nos imolarmos ao eterno Pai, nós todos, com nossa Cabeça, que sofreu por nós.
No sacramento do altar, segundo o mesmo Agostinho, torna-se patente à Igreja
que no sacrifício que oferece, ela mesma é oferecida.(100)
94.
Considerem, pois, os fiéis a que dignidade os eleva a sagrada água do batismo;
e não se contentem em participar do sacrifício eucarístico com a intenção geral
que convém aos membros de Cristo e filhos da Igreja, mas livre e intimamente
unidos ao sumo sacerdote e ao seu ministro na terra, segundo o espírito da
sagrada liturgia, se unam a ele de modo particular no momento da consagração
da hóstia divina, e a ofereçam junto com ele quando são pronunciadas
aquelas solenes palavras "por ele, com ele, nele, a ti, Deus Pai
todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória por
todos os séculos dos séculos'';(101) à essas palavras o povo responde: Amém.
Nem se esqueçam os cristãos de oferecer-se, com a divina Cabeça crucificada, a
si mesmos e as suas preocupações, angústias, dores, misérias e necessidades.
3. Os
meios de promover a participação dos fiéis
95. São,
pois, dignos de louvor aqueles que, com o fim de tornar mais fácil e frutuosa
ao povo cristão a participação no sacrifício eucarístico, se esforçam em
colocar oportunamente nas mãos do povo o "Missal romano" de modo que
os fiéis, unidos ao sacerdote, orem com ele, com as suas próprias palavras e
com os mesmos sentimentos da Igreja; como também os que visam a fazer da
liturgia, ainda que externamente, uma ação sagrada, na qual têm parte de fato
todos os assistentes. Isso pode acontecer de vários modos: quando todo o povo,
segundo as normas rituais, responde disciplinadamente às palavras do sacerdote
ou executa cânticos correspondentes às várias partes do sacrifício, ou faz uma
e outra coisa, ou, enfim, quando, na missa solene, responde alternadamente às
orações dos ministros de Jesus Cristo e se associa ao canto litúrgico.
96.
Todavia, essas maneiras de participar do sacrifício são para louvar e
aconselhar, quando obedecem escrupulosamente aos preceitos da Igreja e às
normas dos sagrados ritos. São ordenadas sobretudo para alimentar e fomentar a
piedade dos cristãos e a sua íntima união com Cristo e com o seu ministro
visível e a estimular aqueles sentimentos e aquelas disposições interiores com
as quais é necessário que a nossa alma se assemelhe ao sumo sacerdote do Novo
testamento. Não obstante, se bem que isto demonstre no modo exterior, que o
sacrifício por sua natureza, enquanto é realizado pelo mediador de Deus e dos
homens (102) deve ser considerado obra de todo o corpo místico de Cristo, não
são porém necessárias para constituir-lhe o caráter público e comum. Além
disso, a missa "dialogada" não pode substituir a missa solene, a
qual, ainda que celebrada na presença apenas dos ministros, goza de uma
particular dignidade pela majestade dos ritos e aparato das cerimônias; se bem
que o seu esplendor e solenidade muito ganhem se, como o prefere a Igreja, o
povo numeroso e devoto a ela assistir.
97.
Deve-se ainda observar que estão fora da verdade e do caminho da reta razão os
que, arrastados por falsas opiniões, tanto valor atribuem a todas essas
circunstâncias que não duvidam asseverar que, omitindo-as, a ação sagrada não
pode alcançar o fim prefixado.
98. Não
poucos fiéis, com efeito, são incapazes de usar o "Missal Romano"
ainda quando escrito em língua vulgar; nem todos são capazes de compreender
corretamente, como convém, os ritos e as cerimônias litúrgicas. A inteligência,
o caráter e a índole dos homens são tão vários e dissemelhantes que nem todos
podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos cantos ou
pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as
disposições das almas não são iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em
cada um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos
cristãos não podem participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os
benefícios? Certamente que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais
fácil: por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo
exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma difiram dos
sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza. Por isso vos
exortamos, veneráveis irmãos, a que na vossa diocese ou jurisdição eclesiástica
reguleis e ordeneis o modo mais adequado mediante o qual o povo consiga
participar da ação litúrgica segundo as normas estabelecidas no "Missal
Romano" e segundo os preceitos da Sagrada Congregação dos ritos e do
Código de direito canônico. Faça-se, pois, tudo com a necessária ordem e
decoro, nem seja permitido a ninguém, ainda que sacerdote, usar os sagrados
edifícios para experimentações arbitrárias. A esse propósito desejamos ainda,
como já existe para a arte e a música sacra, também se constitua nas dioceses,
uma comissão para promover o apostolado litúrgico, a fim de que, sob o vosso
vigilante cuidado, tudo se faça diligentemente segundo as prescrições da Sé
Apostólica.
99. Nas
comunidades religiosas observe-se cuidadosamente tudo o que as próprias
constituições estabeleceram nesta matéria, e não se introduzam novidades que
não tenham sido primeiro aprovadas pelos superiores. Na realidade, ainda que
possam ser várias as circunstâncias exteriores da participação do povo no
sacrifício eucarístico e nas outras ações litúrgicas, sempre deve procurar-se
com todo o cuidado que as almas dos assistentes se unam ao divino Redentor com
os mais estreitos laços possíveis e que a sua vida se enriqueça de santidade
sempre maior e cresça todo dia a glória do Pai celeste.
III. A
comunhão eucarística
100. O
augusto sacrifício do altar conclui-se com a comunhão do divino banquete. Mas,
como todos sabem, para haver integridade do sacrifício, somente é exigido que o
sacerdote se nutra do alimento celeste e não que o povo - coisa aliás sumamente
desejável - participe da santa comunhão.
101.
Agrada-nos a esse propósito repetir as considerações de Nosso predecessor Bento
XIV sobre as definições do concílio de Trento: "Em primeiro lugar...
devemos dizer que a nenhum fiel pode vir à mente que as missas privadas, nas
quais apenas o sacerdote comunga, percam por isso o valor do verdadeiro,
perfeito e íntegro sacrifício instituído por Cristo Senhor e devam, portanto,
ser consideradas ilícitas. Nem os fiéis ignoram - pelo menos podem ser
facilmente instruídos - que o sacrossanto concílio de Trento, fundando-se na
doutrina guardada na ininterrupta tradição da Igreja, condenou a nova e falsa
doutrina de Lutero, contraria a esta"(103). Quem disser que as missas nas
quais só o sacerdote comunga sacramentalmente são ilícitas, e por isso devam
ser abolidas, seja anátema".(104)
102.
Afastam-se, pois, do caminho da verdade os que recusam celebrar, se o povo
cristão não se aproximar da mesa divina; e ainda mais se afastam os que, para
sustentar a absoluta necessidade de que os fiéis se nutram do banquete
eucarístico juntamente com o sacerdote, afirmam capciosamente que não se trata
somente de um sacrifício, mas de sacrifício e banquete de união fraterna, e
fazem da santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração.
103.
Deve-se ainda uma vez notar que o sacrifício eucarístico consiste
essencialmente na imolação incruenta da vítima divina, imolação que é
misticamente manifestada pela separação das sagradas espécies e pela sua
oblação feita ao Pai Eterno. A santa comunhão pertence à integridade do
sacrifício, e à participação nele por meio da recepção do augusto sacramento; e
enquanto é absolutamente necessária ao ministro sacrificador, aos fiéis é
vivamente recomendável.
104.
Como, porém, a Igreja, enquanto mestra de verdade, se esforça com todo o
cuidado por guardar a integridade da fé católica, assim, enquanto mãe solícita
de seus filhos exorta-os instantemente a participarem com avidez e freqüência
deste máximo benefício da nossa religião.
105.
Deseja antes de tudo, que os cristãos - especialmente quando não possam
facilmente receber de fato o alimento eucarístico - o recebam ao menos em
desejo; de sorte que se unam a ele com fé viva, com ânimo reverentemente
humilde e confiante na vontade do Redentor divino e com o amor mais ardente.
106. Mas
isso não lhe basta. Já que, como acima dissemos, podemos participar do
sacrifício também pela comunhão sacramental, por meio do banquete do pão dos
anjos, a madre Igreja, para que mais eficazmente "possamos sentir em nós
continuamente o fruto da redenção" (105) repete a todos os seus filhos o
convite de Cristo Senhor: "tomai e comei... fazei isto em minha
memória".(106) Nesse propósito o concílio de Trento, fazendo eco aos
desejos de Jesus Cristo e de sua esposa imaculada, insta por "que em todas
as missas os fiéis presentes participem não só espiritualmente, mas ainda
sacramentalmente da eucaristia, para que lhes venha mais abundante o fruto
deste sacrifício".(107) Aliás, para melhor e mais claramente manifestar-se
a participação dos fiéis no sacrifício divino por meio da comunhão eucarística,
o nosso imortal predecessor Bento XIV louva a devoção daqueles que, não só
desejam nutrir-se do alimento celeste durante a assistência ao sacrifício, mas
preferem alimentar-se com hóstias consagradas no mesmo sacrifício, se bem que,
como ele declara, participemos verdadeira e realmente do sacrifício, mesmo
quando se trate de pão eucarístico devidamente consagrado antes. Assim, com
efeito, escreve: "Embora participem do mesmo sacrifício não só aqueles aos
quais o sacerdote celebrante dá parte da Vítima por ele oferecida na mesma
missa, mas também aqueles aos quais o sacerdote dá a eucaristia que se costuma
conservar; nem por isso a Igreja proibiu no passado, ou proíbe atualmente, que
o sacerdote satisfaça à devoção e ao justo pedido daqueles que assistem à missa
e pedem para participar do mesmo sacrifício, também por eles oferecido na
maneira que lhes é apropriada; antes aprova e deseja que assim se faça e
reprovaria os sacerdotes que, por sua culpa ou negligência privassem os fiéis
desta participação". (108)
107.
Queira, pois, Deus que todos, espontanea e livremente, correspondam a esses
solícitos convites da Igreja; queira Deus que os fiéis, mesmo todos os dias se
o puderem, participem não só espiritualmente do sacrifício divino, mas ainda da
comunhão do augusto sacramento, recebendo o corpo de Jesus Cristo, oferecido
por todos ao Pai Eterno. Estimulai, veneráveis irmãos, nas almas confïadas aos vossos
cuidados, a apaixonada e insaciável fome de Jesus Cristo; vosso ensinamento
cerque os altares de crianças e de jovens que ofereçam ao Redentor divino a sua
inocência e o seu entusiasmo: aproximem-se freqüentemente os cônjuges para que,
nutridos na sagrada mesa e graças a ela, possam educar no espírito e na
caridade de Jesus Cristo a prole que lhes foi confiada; sejam convidados os
operários para que possam receber o alimento eficaz e indefectível que lhes
restaura as forças e prepara às suas fadigas a recompensa eterna no céu;
aproximai enfim os homens de todas as classes e "compeli-os a
entrar",(109) porque este é o pão da vida do qual todos têm necessidade. A
Igreja de Jesus Cristo só dispõe desse pão para saciar as aspirações e os
desejos das nossas almas, para uni-las intimamente a Jesus Cristo, afim de, por
ele, se tornarem "um só corpo"(110) e confraternizarem quantos se
sentam à mesma mesa para tomar o remédio da imortalidade (111) com a fração do
pão único.
108. É
assaz oportuno, ainda - o que aliás é estabelecido pela liturgia - que o povo
compareça à santa comunhão depois que o sacerdote tomou no altar o alimento
divino; e, como já dissemos, são para louvar aqueles que, assistindo à missa,
recebem as hóstias consagradas no mesmo sacrifício, verificando-se destarte que
"quantos, participando deste altar, hajamos recebido o sacrossanto corpo e
sangue de teu Filho, sejamos cumulados de toda a graça e bênção
celeste".(112)
109.
Todavia, não faltam nem são raras as causas pelas quais se deva distribuir o
pão eucarístico, antes ou depois do sacrifício, como também que se comungue com
hóstias anteriormente consagradas, embora se distribua a comunhão em seguida à
do sacerdote. Mesmo nesses casos - como aliás já advertimos antes - o povo
participa regularmente do sacrifício eucarístico e pode freqüentemente, com
maior facilidade, aproximar-se da mesa de vida eterna. Se a Igreja com maternal
condescendência se esforça por vir ao encontro das necessidades espirituais dos
seus filhos, estes, contudo, de sua parte, não devem facilmente desdenhar o que
a sagrada liturgia aconselha e, sempre que não haja motivo plausível em
contrário, devem fazer tudo o que mais claramente manifesta no altar a viva
unidade do corpo místico.
110.
Finda a sagrada ação, regulada pelas normas litúrgicas particulares, não
dispensa a ação de graças de quem saboreou o alimento celeste; é, aliás muito
conveniente que, recebido o alimento eucarístico e terminados os ritos
públicos, se recolha e, intimamente unido com o divino Mestre, se entretenha
com ele tanto quanto as circunstâncias lho permitam, em dulcíssimo e salutar
colóquio. Afastam-se, pois, do reto caminho da verdade aqueles que, baseando-se
nas palavras mais que no sentido, afirmam e ensinam que, terminada a missa, não
se deve prolongar a ação de graças, não só porque o sacrifício do altar é por
natureza uma ação de graças mas ainda porque isso pertence à piedade privada,
pessoal e não ao bem da comunidade. Pelo contrário, a própria natureza do
Sacramento requer do cristão que o recebe, que se locuplete com abundantes
frutos de santidade.
111.
Certamente a pública assembléia da comunidade está dissolvida, mas é necessário
que os indivíduos unidos com Cristo não interrompam na sua alma o cântico de
louvor, "agradecendo sempre tudo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo a
Deus e Pai".(113) A isso nos exorta ainda a própria liturgia do sacrifício
eucarístico, quando nos manda rezar com estas palavras: "Concede, nós te
pedimos, render-te contínuas graças (114) e não cessar jamais de louvar-te".(115)
Se se deve, pois, sempre agradecer a Deus e jamais cessar de louvá-lo, quem
ousaria repreender e desaprovar a Igreja que aconselha aos seus sacerdotes
(116) e aos fiéis entreterem-se ao menos um pouco de tempo depois da comunhão
em colóquio com o divino Redentor, e que inseriu nos livros litúrgicos
oportunas orações enriquecidas de indulgências com as quais os sagrados
ministros se possam convenientemente preparar antes de celebrar e de comungar
e, acabada a santa missa, manifestar a Deus a sua ação de graças? A sagrada
liturgia, longe de sufocar os íntimos sentimentos particulares dos cristãos, os
facilita e estimula a que sejam assimilados a Jesus Cristo e por meio dele
dirigidos ao Pai; portanto ela mesma exige que aquele que se aproxima da mesa
eucarística agradeça devidamente a Deus. O divino Redentor compraz-se em ouvir
as nossas orações, falar conosco de coração aberto e oferecer-nos refúgio no
seu Coração ardente.
112.
Esses atos próprios dos indivíduos são absolutamente necessários para aproveitar-nos
mais abundantemente de todos os sobrenaturais tesouros de que é rica a
eucaristia e para transmiti-los aos outros segundo as nossas possibilidades, a
fim de que Cristo Senhor consiga em todas as almas a plenitude de sua virtude.
Por que, pois, veneráveis irmãos; não louvaremos aqueles que, recebido o
alimento eucarístico, ainda depois que se dissolveu oficialmente a assembléia
cristã, se demoram em íntima familiaridade com o divino Redentor, não só para
tratar docemente com ele, mas ainda para agradecê-lo, louvá-lo e especialmente
para pedir-lhe ajuda, e, assim, afastar de sua alma tudo quanto possa diminuir
a eficácia do sacramento, ao passo que se aproveita de tudo o que logra
favorecer a atualíssima ação de Jesus? Antes, nós os exortamos a fazê-lo, de
modo particular, quer traduzindo na prática os propósitos concebidos e
exercitando as virtudes cristãs, quer adaptando às próprias necessidades quanto
tenham recebido com real liberalidade. Falava deveras segundo os preceitos e
espírito da liturgia o autor do áureo livrinho a "Imitação de
Cristo", quando aconselhava a quem tivesse comungado: "Recolhe-te em
segredo e goza de teu Deus para que possuas aquele que o mundo inteiro não
poderá tirar-te".(117)
113.
Assim, pois, intimamente unidos a Cristo, procuremos todos mergulhar em sua
santíssima alma e unir-nos com ele para participar dos atos de adoração com os
quais ele oferece à Trindade Augusta a homenagem mais grata e aceita; aos atos
de louvor e de ação de graças que ele oferece ao Pai Eterno e a que faz eco o
cântico do céu e da terra: "Bendigam ao Senhor todas as suas obras";
(118) participando dos atos, imploremos a ajuda celeste no momento mais
oportuno para pedir e obter socorro em nome de Cristo (119) mas, sobretudo,
ofereçamo-nos e imolemo-nos como vítimas clamando: "Faze que sejamos
oferta eterna a ti",(120)
114. O
divino Redentor repete incessantemente o seu insistente convite:
"Permanecei em mim".(121) por meio do sacramento da eucaristia,
Cristo fica em nós e nós ficamos em Cristo; e como Cristo, permanecendo em nós,
vive e opera, assim é necessário que nós, permanecendo em Cristo, por ele
vivamos e operemos.
IV.
Adoração da eucaristia
115.
Contém o alimento eucarístico, como todos sabem, "verdadeira, real e
substancialmente o corpo e o sangue junto com a alma e a divindade de nosso
Senhor Jesus Cristo"; (122) não é de admirar, pois, se a Igreja, desde as
origens adorou o corpo de Cristo sob as espécies eucarísticas, como se vê dos
ritos mesmos do augusto sacrifício, com os quais se prescreve aos sagrados
ministros que adorem o santíssimo sacramento com genuflexões e inclinações
profundas.
116. Os
sagrados concílios ensinam que, desde o início de sua vida, foi transmitido à
Igreja que se deve honrar "com uma única adoração o Verbo Deus encarnado e
a sua própria carne" (123); e santo Agostinho afirma: "Ninguém come
esta carne sem tê-la primeiro adorado", acrescentando que não só não
pecamos adorando, antes pecamos não adorando.(124)
117.
Desses princípios doutrinários nasceu e se foi pouco a pouco desenvolvendo o
culto eucarístico da adoração, distinto do santo sacrifício. A conservação das
sagradas espécies para os enfermos e para todos os que viessem a encontrar-se
em perigo de morte, introduziu o louvável uso de adorar este alimento celeste
conservado nas igrejas. Esse culto de adoração tem um válido e sólido motivo. A
eucaristia, de fato, é sacrifício e é, também, sacramento; e difere dos outros
sacramentos enquanto não só produz a graça, mas ainda contém de modo permanente
o próprio autor da graça. Quando, por isso, a Igreja nos manda adorar a Cristo
sob os véus eucarísticos e suplicar-lhe os dons sobrenaturais e terrenos de que
temos sempre necessidade, manifesta a fé viva com a qual crê presente sob
aqueles véus o seu Esposo divino, manifesta-lhe o seu reconhecimento e goza da
sua íntima familiaridade.
118.
Nesse culto, a Igreja, no decurso dos tempos, introduziu várias formas cada dia
certamente mais belas e salutares, como, por exemplo: devotas e mesmo
cotidianas visitas ao divino tabernáculo; bênção do santíssimo sacramento;
procissões solenes por vilas e cidades, especialmente por ocasião dos
congressos eucarísticos, e adoração do augusto sacramento publicamente exposto,
as quais algumas vezes duram pouco e outras vezes se prolongam por horas
inteiras e até, por quarenta horas; em alguns lugares são estabelecidas durante
o ano todo, por turnos, em cada Igreja; em outros lugares se continuam de dia e
de noite ao cuidado de comunidades religiosas e nelas freqüentemente tomam
parte também os fiéis.
119.
Esses exercícios de devoção contribuíram de modo admirável para a fé e a vida
sobrenatural da Igreja militante na terra, a qual, assim fazendo, se torna, de
certo modo, eco da Igreja triunfante que eternamente canta o hino de louvor a
Deus e ao Cordeiro "que foi imolado".(125) Por isso, a Igreja não só
aprovou mas fez seus e confirmou com a sua autoridade estes exercícios devotos
propagados em toda a parte no correr dos séculos.(126) Eles fluem do espírito
da sagrada liturgia; e por isso, desde que sejam cumpridos com o decoro, a fé e
a devoção requeridas pelos sagrados ritos e pelas prescrições da Igreja,
certamente ajudam muitíssimo a viver a vida litúrgica.
120. Nem
se diga que tal culto eucarístico provoca uma errônea confusão entre o Cristo
histórico, como dizem, que viveu na terra, o Cristo presente no augusto
sacramento do altar, e o Cristo triunfante no céu e dispensador de graças;
deve-se, pelo contrário, afirmar que, desse modo, os fiéis testemunham e
manifestam solenemente a fé da Igreja, com a qual se crê que um e idêntico é o
Verbo de Deus e o Filho de Maria virgem, que sofreu na cruz, que está presente
e oculto na eucaristia, e que reina no céu. Assim afirma são João Crisóstomo:
"Quando vês a ti; apresentado (o corpo de Cristo) dize a ti mesmo: por
este corpo não sou mais terra e pó, não mais escravo, porém livre: por isso,
espero alcançar o céu e os bens que aí se encontram, a vida imortal, a herança
dos anjos, a companhia de Cristo; este corpo transpassado pelos cravos, dilacerado
pelos açoites, não foi presa da morte... Este é aquele corpo que foi
ensangüentado, transpassado pela lança, do qual brotaram duas fontes salutares:
uma de sangue, outra de água... Este corpo foi-nos dado para o possuir e para o
comer, e isso foi conseqüência de intenso amor".(127)
121. De
modo particular, ademais, é muito de louvar-se o costume segundo o qual muitos
exercícios de piedade entrados no uso do povo cristão, se encerram com o rito
da bênção eucarística. Nada melhor nem mais vantajoso que o gesto com o qual o
sacerdote, levantando ao céu o pão dos anjos, em presença da multidão cristã
ajoelhada, e movendo-o em forma de cruz, invoca o Pai Celeste para que se digne
volver benignamente os olhos a seu Filho crucificado por nosso amor, e, graças
a ele, que quis ser nosso Redentor e irmão, difunda por sua intervenção, os
seus dons celestes sobre os remidos pelo sangue imaculado do Cordeiro.(128)
122.
Procurai, pois, veneráveis irmãos, com a vossa habitual e grande diligência,
que os templos edificados pela fé e pela piedade das gerações cristãs no
decurso dos séculos como um perene hino de glória a Deus onipotente e como
digna habitação do nosso Redentor oculto sob as espécies eucarísticas, sejam o
mais possível abertos aos sempre mais numerosos fiéis, para que eles,
recolhidos aos pés de nosso Salvador, ouçam o seu dulcíssimo convite:
"Vinde a mim, vós todos que estais atribulados e oprimidos, e eu vos
aliviarei".(129) Os templos sejam em verdade a casa de Deus, na qual quem
entra para pedir favores se alegre de tudo conseguir (130) e alcance a
consolação celeste.
123.
Somente assim poderá acontecer que toda a família humana se pacifique na ordem
e, com inteligência e coração concordes, cante o hino da esperança e do amor:
"Bom Pastor, pão verdadeiro - ó Jesus, compadece-te de nós -
apascenta-nos, guarda-nos, - faze-nos contemplar a felicidade na terra dos
vivos".(131)
TERCEIRA
PARTE
O OFÍCIO
DIVINO E O ANO LITÚRGICO
I. O
ofício divino
124. O
ideal da vida cristã consiste em se unir cada um intimamente a Deus. Por isso,
o culto que a Igreja rende ao Eterno e que se sintetiza no sacrifício
eucarístico e no uso dos sacramentos é ordenado e disposto, de modo que, com o
ofício divino, se estenda a todas as horas do dia, às semanas, a todo o curso
do ano, a todos os tempos e a todas as condições da vida humana.
125.
Tendo o divino Mestre recomendado: "É necessário rezar sempre, sem
esmorecer",(132) a Igreja, obedecendo fielmente a essa recomendação, não
cessa de rezar e exortar-nos com o apóstolo das gentes: "Por seu
intermédio (de Jesus) ofereçamos sempre a Deus o sacrifício de
louvor".(133)
126. A
oração pública e coletiva endereçada a Deus por todos juntos, realizava-se na
antiguidade somente em certos dias e outros momentos do dia. Contudo rezava-se
não só nas reuniões públicas, mas ainda nas casas particulares e, às vezes, com
os vizinhos e amigos. Bem cedo, porém, nas várias partes da cristandade,
introduziu-se o uso de reservar à oração tempos particulares, por exemplo, a
última hora do dia, quando o sol se esconde e se acende o lampadário; ou à
primeira hora, quando termina a noite, isto é, depois do canto do galo e ao
surgir do sol. Outros momentos do dia são indicados como mais próprios para a
oração pela Sagrada Escritura, pelo costume tradicional hebráico e práticas
cotidianas. Segundo os Atos dos Apóstolos, os discípulos de Jesus
Cristo reuniam-se para orar na terceira hora, quando "ficaram todos
repletos do Espírito Santo" ;(134) o príncipe dos apóstolos, antes de
tomar alimento, "subiu à parte superior da casa para rezar por volta da
hora sexta";(135) Pedro e João "subiam ao templo para a oração na
hora nona"; (136) e Paulo e Silas "louvavam a Deus à meia
noite".(137)
127.
Essas várias orações especialmente por iniciativa e obra dos monges e dos
ascetas, aperfeiçoaram-se cada dia mais, e pouco a pouco foram introduzidas no
uso da sagrada liturgia por autoridade da Igreja.
128. O
Ofício divino é, pois, a oração do corpo místico de Cristo, dedicada a Deus em
nome de todos os cristãos e em seu beneficio, feita pelos sacerdotes, por
outros ministros da Igreja e pelos religiosos delegados da própria Igreja para
isso.
129. Qual
deva ser o caráter e eficácia desse louvor divino, deduz-se das palavras que a
Igreja sugere dizer antes de iniciar-se a oração do Ofício, prescrevendo que
sejam recitadas "digna, atenta e devotamente".
130.
Assumindo a natureza humana, o Verbo de Deus introduziu no exílio terreno o
hino que se canta no céu por toda a eternidade. Une a si toda a comunidade
humana e a associa no canto deste hino de louvores. Confessemos com humildade
que "não sabemos o que devemos convenientemente pedir, mas o próprio
Espírito reza por nós com gemidos inenarráveis". (138) E ainda Cristo, por
meio do seu Espírito, invoca em nós o Pai. "Deus não poderia fazer aos
homens um dom maior... reza (Jesus) por nós como nosso sacerdote; reza em nós
como nossa cabeça; é invocado por nós como nosso Deus... reconheçamos, pois, as
nossas vozes nele e a sua voz em nós... Rezamos a ele como a Deus, ele reza
como servo: lá o Criador, aqui um ser criado, enquanto, sem sofrer mudança,
tomou uma natureza mutável, fazendo de nós um só homem com ele: cabeça e
corpo".(139)
131. A
excelsa dignidade dessa oração da Igreja deve corresponder a intensa devoção da
nossa alma e, visto que a voz do orante repete os poemas escritos por
inspiração do Espírito Santo, que proclamam e exaltam a perfeitíssima grandeza
de Deus, é ainda necessário que a essa voz se junte o movimento interior do
nosso espírito para fazer nossos aqueles mesmos sentimentos com os quais nos
elevamos ao céu, adoramos a santíssima Trindade e lhe rendemos os devidos
louvores e ações de graças: "Devemos salmodiar de modo que a nossa mente concorde
com a nossa voz". (140) Não se trata, pois, de uma recitação somente, ou
de um canto que, embora perfeitíssimo segundo as leis da arte musical e as
normas dos sagrados ritos, chegue apenas ao ouvido; mas sobretudo de uma
elevação da nossa mente e da nossa alma a Deus para que nos consagremos, nós e
todas as nossas ações, a ele, unidos com Jesus Cristo.
132.
Disso depende certamente, em não pequena parte, a eficácia das orações, as
quais, se não se dirigem ao próprio Verbo feito homem, concluem com estas
palavras: "Por nosso Senhor Jesus Cristo" que, mediador entre nós e
Deus, mostra ao Pai celeste os seus estigmas gloriosos, "sempre viva para
interceder por nós".(141)
133. Os
salmos, como todos sabem, constituem parte principal do Oficio divino. Eles
abrangem todo o curso do dia e lhe dão um contato e um ornamento de santidade.
Cassiodoro disse belamente a propósito dos salmos distribuídos no Oficio divino
do seu tempo: "Eles... com júbilo matutino nos tornam favorável o dia que
está para começar, santificam a primeira hora do dia, consagram a terceira
hora, alegram a sexta na fração do pão, assinalam, à nona, o fim do jejum,
concluem o término do dia e impedem o nosso espírito de obscurecer-se ao
avizinhar-se a noite".(142)
134. Eles
lembram as verdades reveladas por Deus ao povo eleito, às vezes terríveis, às
vezes impregnadas de suavíssima doçura; repetem e acendem a esperança no
Libertador prometido que outrora era animada com o canto em torno da lareira
doméstica e na própria majestade do templo; põem em maravilhosa luz a
profetizada glória de Jesus Cristo e o seu sumo e eterno poder, a sua vinda e o
seu aniquilamento neste exílio terreno, a sua dignidade real e o seu poder
sacerdotal, as suas benéficas fadigas e o seu sangue derramado pela nossa redenção.
Exprimem igualmente a alegria das nossas almas, a tristeza, a esperança, o
temor, a correspondência do amor e o abandono a Deus qual mística ascensão para
os divinos tabernáculos.
135.
"O salmo... é a bênção do povo, o louvor de Deus, o elogio do povo, o
aplauso de todos, a linguagem geral, a voz da Igreja, a harmoniosa confissão de
fé, o pleno devotamento à autoridade, a alegria da liberdade, o grito de
entusiasmo, o eco da alegria."(143)
136. Na
antiguidade, a assistência dos fiéis a essas orações do Ofício era maior; mas
gradativamente diminuiu como dissemos; e como acabamos de dizer, a sua
recitação atualmente é reservada ao clero e aos religiosos. Em rigor de lei,
nada é prescrito aos leigos nesta matéria, mas é muito de desejar que eles
tomem parte ativa no canto ou na recitação do Oficio de Vésperas nos dias
festivos, na própria paróquia. Recomendamos vivamente, veneráveis irmãos, a vós
e aos vossos féis que não cesse este piedoso hábito e que, se possível, se
ponha em vigor onde tiver desaparecido. Isso acontecerá certamente com frutos
salutares se as Vésperas forem cantadas não só digna e decorosamente mas de
maneira que nutra suavemente de vários modos a piedade dos fiéis. Seja sagrada
a observância dos dias festivos que devem ser dedicados e consagrados a Deus de
modo particular; e; sobretudo, do domingo, que os apóstolos, instruídos pelo
Espírito Santo, substituíram ao sábado. Se foi ordenado aos judeus:
"Trabalhareis durante seis dias; no sétimo dia que é sábado, repouso santo
do Senhor, quem trabalhar neste dia será condenado à morte";(144) como não
terão a morte espiritual aqueles cristãos que fazem obra servil nos dias
festivos e durante o repouso festivo não se dedicam à piedade nem à religião,
mas se abandonam demasiadamente aos atrativos deste século? O domingo e os dias
festivos devem ser consagrados ao culto divino com o qual se adora a Deus e a
alma se nutre do alimento celeste; e se bem que a Igreja prescreva somente que
os fiéis devam abster-se do trabalho servil e devam assistir ao sacrifício
eucarístico, e não dê nenhum preceito para o culto vespertino, note-se que,
além dos preceitos existem também suas insistentes recomendações e desejos, o
que ainda mais é exigido pela necessidade que todos têm de tornar propício o
Senhor para impetrar benefícios. Contrista-se profundamente nossa alma ao ver
como em nossos tempos o povo cristão passa a tarde do dia festivo: enchem-se os
lugares de espetáculos públicos e de jogos, enquanto as igrejas são menos
freqüentadas do que conviria. Mas é necessário, sem dúvida, que todos vão aos
nossos templos para ser instruídos na verdade da fé "católica, para cantar
os louvores de Deus, para serem enriquecidos pelo sacerdote com a bênção
eucarística e munidos do auxílio celeste contra a adversidade da vida presente.
Procurem todos aprender as fórmulas que se cantam nas Vésperas e penetrar-lhes
o íntimo sentido; sob o influxo dessas orações experimentarão aquilo que santo
Agostinho afirmava de si mesmo: "Quanto chorei entre hinos e cânticos,
vivamente comovido pelo canto suave da tua Igreja! Aquelas vozes ressoavam nos
meus ouvidos, instilavam a verdade no meu coração, em mim ardiam sentimentos de
devoção, e as lágrimas corriam, fazendo-me bem".(145)
II. Ciclo
dos mistérios do ano litúrgico
137.
Durante todo o correr do ano a celebração do sacrifício eucarístico e o Oficio
divino se desenvolvem sobretudo em torno da pessoa de Jesus Cristo e se
organizam de modo tão harmonioso e adequado que faz dominar o nosso Salvador
nos seus mistérios de humilhação, de redenção e de triunfo.
138.
Evocando esses mistérios de Jesus Cristo, a sagrada liturgia visa a fazer deles
participar todos os crentes de modo que a divina Cabeça do corpo místico viva
na plenitude da sua santidade nos membros. Sejam as almas dos cristãos como
altares nos quais se repetem e se reavivam as várias fases do sacrifício que o
sumo Sacerdote imola; isto é, as dores e as lágrimas que lavam e expiam os
pecados; a oração dirigida a Deus que se eleva até o céu; a própria imolação
feita com ânimo pronto, generoso e solícito e, enfim, a íntima união com a qual
nos abandonamos, nós e nossas coisas a Deus e nele repousamos "sendo o
essencial da religião imitar aquele que adoras". (146)
139.
Conforme esses modos e motivos com os quais a liturgia propõe à nossa meditação
em tempos fixos a vida de Jesus Cristo, a Igreja nos mostra os exemplos que
devemos imitar e os tesouros de santidade que fazemos nossos, porque é
necessário crer com a mente aquilo que se canta com a boca, e traduzir na
prática dos costumes particulares e públicos o que se crê com a mente.
140. Com
efeito, no tempo do advento, excita em nós a consciência dos pecados
miseramente cometidos; e nos exorta a fim de que, refreando os desejos com a
mortificação voluntária do corpo, nos recolhamos em pia meditação e sejamos
impelidos pelo desejo de voltar a Deus que, só ele, pode com a sua graça
libertar-nos da mancha dos pecados e dos males que nos afligem.
141. Na
ocorrência do Natal do Redentor parece quase reconduzir-nos à gruta de Belém
para que aí aprendamos que é absolutamente necessário nascer de novo e
reformar-nos radicalmente, o que só é possível quando nos unimos íntima e
vitalmente ao Verbo de Deus feito homem e nos tornamos participantes da sua
divina natureza à qual fomos elevados.
142. Com
a solenidade da Epifania, recordando a vocação das gentes à fé cristã, quer que
agradeçamos cada dia ao Senhor por tão grande benefício, desejemos com grande
fé o Deus vivo, compreendamos com devoção e profundamente as coisas
sobrenaturais e amemos o silêncio e a meditação para poder facilmente
compreender e conseguir os dons celestes.
143. Nos
dias da Septuagésima e da Quaresma, a Igreja, nossa mãe, multiplica os seus
cuidados para que diligencie cada qual por se compenetrar da sua miséria,
ativamente se incite à emenda dos costumes, e deteste de modo particular os
pecados, suprimindo-os com a oração e a penitência, já que a assídua oração e a
penitência dos pecados cometidos nos obtêm o auxílio divino sem o qual é inútil
e estéril toda obra nossa. No tempo sagrado em que a liturgia nos propõe as
atrozes dores de Jesus Cristo, a Igreja nos convida ao Calvário, a seguir as
pegadas sanguinolentas do divino Redentor a fim de que de bom grado carreguemos
a cruz com ele, tenhamos em nós os mesmos sentimentos de expiação e de
propiciação e juntos morramos todos com ele.
144. Na
solenidade pascal, que comemora o triunfo de Cristo, sente-se a nossa alma
penetrada de íntima alegria, e devemos oportunamente pensar que também nós,
junto com o Redentor, surgiremos, de uma vida fria e inerte para uma vida mais
santa e fervorosa, a Deus oferecendo-nos todos, com generosidade e
esquecendo-nos desta mísera terra para só aspirar ao céu: "Se
ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas supernas, aspirai às coisas do
alto".(147)
145. No
tempo de Pentecostes, finalmente, exorta nossa Igreja, com os seus preceitos e
a sua obra, a oferecer-nos docilmente à ação do Espírito Santo, o qual quer
acender em nossos corações a divina caridade para progredirmos na virtude com
maior empenho, e assim nos santificar, como são santos Cristo Senhor e o seu
Pai Celeste.
146. Todo
o ano litúrgico, assim, pode dizer-se um magnífico hino de louvor que a família
cristã dirige ao Pai celeste por meio de Jesus, seu eterno mediador; mas requer
de nós ainda um cuidado diligente e bem ordenado para conhecer e louvar sempre
mais o nosso Redentor; um esforço intenso e eficaz, um adestramento incansável
para imitar os seus mistérios, entrar voluntariamente no caminho de suas dores,
e participar, finalmente, de sua glória e eterna beatitude.
147. De
quanto foi exposto aparece claramente, veneráveis irmãos, quanto estejam longe
do verdadeiro e genuíno conceito da liturgia escritores modernos, que,
enganados por uma pretensa disciplina mística mais alta, ousam afirmar que não
nos devemos concentrar no Cristo histórico mas no Cristo "pneumático e
glorificado"; e não duvidam asseverar que na piedade dos fiéis se tenha
verificado certa mudança, pela qual Cristo foi como que destronado com o
apegamento de Cristo glorificado que vive e reina nos séculos dos séculos,
assentado à direita do Pai, enquanto em seu lugar foi colocado o Cristo da vida
terrena. Alguns, por isso, chegam ao ponto de querer tirar das Igrejas as
imagens do divino Redentor que sofre na cruz.
148. Mas
essas falsas opiniões são de todo contrárias à sagrada doutrina tradicional.
"Crê em Cristo nascido na carne - diz santo Agostinho - e chegarás a
Cristo nascido de Deus, Deus de Deus".(148) A sagrada liturgia, ademais,
nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua vida; isto é, Cristo que é
Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que nos ensina a verdade,
que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que morre; que, enfim,
ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos envia o
Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: "Jesus Cristo ontem e
hoje: ele por todos os séculos". (149) E, além disso, não no-lo apresenta
somente como um exemplo a imitar mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a
seguir, como mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça
mística de que somos membros, vivendo da sua própria vida.
149. E
assim como as suas acerbas dores constituem o mistério principal de que provém
a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica, colocar isto na sua
máxima luz, porque é como o centro do culto divino, por ser o sacrifício
eucarístico a sua cotidiana representação e renovação, e estarem todos os
sacramentos unidos com estreitíssimo vínculo à cruz.(150)
150. Assim
o ano litúrgico, que a piedade da Igreja alimenta e acompanha, não é uma fria e
inerte representação de fatos que pertencem ao passado, ou uma simples e nua
evocação da realidade de outros tempos. É, antes, o próprio Cristo, que vive
sempre na sua Igreja e que prossegue o caminho de imensa misericórdia por ele
iniciado, piedosamente, nesta vida mortal, quando passou fazendo o bem!(151)
com o fim de colocar as almas humanas em contato com os seus mistérios e
fazê-las viver por eles, mistérios que estão perenemente presentes e operantes,
não de modo incerto e nebuloso, de que falam alguns escritores recentes, mas
porque, como nos ensina a doutrina católica e segundo a sentença dos doutores
da Igreja, são exemplos ilustres de perfeição cristã e fonte de graça divina
pelos méritos e intercessão do Redentor; e porque perduram em nós no seu
efeito, sendo cada um deles, de modo consentâneo à própria índole, a causa da
nossa salvação. Acresce que a pia Madre Igreja, enquanto propôs à nossa
contemplação os mistérios de Cristo, invoca com as suas preces os dons
sobrenaturais pelos quais os seus filhos se compenetram do espírito desses
mistério por virtute de Cristo. Por influxo e virtude dele podemos, com a
colaboração da nossa vontade, assimilar a força vital como ramos da árvore,
como membros da cabeça, e progressiva e laboriosamente transformar-nos
"segundo a medida da idade plena de Cristo".(152)
III. As
festas dos santos
151. No
decurso do ano litúrgico relembram-se não só os mistérios de Jesus Cristo, mas
ainda as festas dos santos, nas quais, se bem que se trate de uma ordem
inferior e subordinada, a Igreja tem sempre a preocupação de propôr aos fiéis
exemplos de santidade que os levem a adornar-se das mesmas virtudes do Divino
Redentor. (152). É necessário, com efeito, que imitemos as virtudes dos santos,
nas quais brilha, de modo vário, a própria virtude de Cristo, porque dele foram
imitadores, visto que, em alguns fulgiu o zelo do apostolado; em outros se
demonstrou a fortaleza dos nossos heróis até a efusão do sangue; em outros
brilhou a constante vigilância na espera do Redentor; em outros resplandeceu o
candor virginal da alma e a modesta doçura da humildade cristã; em todos arde
uma fervidíssima caridade para com Deus e para com o próximo. A liturgia põe diante
de nossos olhos todos esses belos ornamentos de santidade, para que
salutarmente os olhemos e para que "nós que gozamos dos seus méritos
sejamos inflamados pelos seus exemplos". (153) É necessário, pois,
conservar "a inocência na simplicidade", a concórdia na caridade, a
modéstia na humildade, a diligência no governo, a atenção em ajudar o que
sofre, a misericórdia em cuidar dos pobres, a constância em defender a verdade,
a justiça na severidade da disciplina, para que não falte em nós nenhuma de
todas as virtudes que nos foram propostas para exemplo. Essas são as pegadas
que os santos, na sua volta à pátria nos deixaram, para, palmilhando os seus
caminhos, podermos segui-los na bem-aventurança... (154) E para salutarmente
impressionar também os nossos sentidos, quer a Igreja que em nossos templos
estejam expostas as imagens dos santos, sempre, porém, com o mesmo fim, isto é,
que "imitemos as virtudes daqueles cujas imagens veneramos".(155)
153. Mas
há ainda outro motivo no culto do povo cristão aos santos: o de implorar a sua
ajuda, e o de "ser amparados pelo patrocínio daqueles em cujo louvor nos
deleitamos". (156) Disso facilmente se deduz o porquê das numerosas
fórmulas de oração que a Igreja nas propõe para invocar a proteção dos santos.
154.
Entre os santos há um culto proeminente a Maria virgem Mãe de Deus. A sua vida,
pela missão comada por Deus, está estreitamente inserida nos mistérios de Jesus
Cristo e ninguém, certamente, mais do que ela, seguiu tão de perto e com maior
eficácia, as pegadas do Verbo encarnado, ninguém goza de maior graça e poder
junto do coração sacratíssimo do Filho de Deus e, através do Filho, junto do
Pai celeste ela é mais santa do que os querubins e os serafins e, sem nenhuma
comparação, mais gloriosa do que todos os outros santos, porque é "cheia
de graça", (157 ) Mãe de Deus, e por nos haver dado, com o seu parto
feliz, o Redentor. A ela, que é "mãe de misericórdia, vida, doçura e
esperança nossa" recorramos todos nós "gemendo e chorando neste vale
de lágrimas".(158) À sua proteção, entreguemo-nos confiantes, nós e todas
as nossas coisas. Ela se tornou nossa mãe quando o divino Redentor cumpria o
sacrifício de si mesmo, e por isso, ainda por esse título, somos seus filhos.
Ela nos ensina todas as virtudes, dá-nos seu Filho e, com ele, todos os
auxílios que nos são necessários, porque Deus "quis que tudo nos viesse
por meio de Maria".(159)
155. Por
esse caminho litúrgico que nos é, cada ano, aberto de novo, sob a ação
santificadora da Igreja, confortados com os auxílios e os exemplos dos santos,
sobretudo da imaculada virgem Maria, "aproximemo-nos com sincero coração,
com plenitude de fé, purificado o coração da consciência de culpa e lavado o
corpo com água pura", (160) do "grande Sacerdote",(161) para
viver e sentir com ele e penetrar por seu intermédio "até além do
véu" (162) e aí honrar o Pai celeste por toda a eternidade.
156. Tal
é a essência e a razão de ser da sagrada liturgia. Ela cuida do sacrifício, dos
sacramentos e do louvor a Deus; da união das nossas almas com Cristo e da
santificação por meio do divino Redentor, afim de ser honrado Cristo e, por ele
e nele, a Santíssima Trindade. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
QUARTA
PARTE
DIRETRIZES PASTORAIS
I.. Não
se descuidem as outras formas de piedade
157. Para
afastar da Igreja os erros e os exageros de que acima falamos e para que possam
os fiéis, guiados por mais seguras normas, praticar o apostolado litúrgico com
abundantes frutos, achamos oportuno, veneráveis irmãos, acrescentar alguma
coisa para a prática da doutrina exposta.
158.
Tratando da genuína piedade, afirmamos que entre a liturgia e os outros atos de
religião - desde que sejam retamente ordenados e tendam ao justo fim - não pode
haver verdadeiro contraste; há, até, alguns exercícios de piedade que a Igreja
recomenda grandemente ao clero e aos religiosos.
159. Ora,
desejamos que também o povo cristão não fique alheio destes exercícios. Estes
são - para falar apenas dos principais - a meditação de assuntos espirituais, o
exame de consciência, os retiros espirituais, instituídos para a reflexão mais
intensa das verdades eternas, a visita ao santíssimo sacramento e as orações
particulares em honra da bem-aventurada virgem Maria, entre as quais excele,
como todos sabem, o rosário.(163)
160. A
essas múltiplas formas de piedade não pode ser estranha a inspiração e a ação
do Espírito Santo; elas, com efeito - se bem que de várias maneiras - visam
todas a voltar e dirigir para Deus as nossas almas, porque as purificam dos
pecados, as dispõem à conquista da virtude e as estimulam à verdadeira piedade,
habituando-as à meditação das verdades eternas, e tornando-as mais capazes da
contemplação dos mistérios da natureza humana e divina de Cristo. Além disso,
nutrindo intensamente nos fiéis a vida espiritual, preparam-nos para participar
das sagradas funções com fruto maior, e evitam o perigo de se reduzirem as
orações litúrgicas a um ritualismo vão.
161. Não
vos canseis, pois, veneráveis irmãos, no vosso zelo pastoral, recomendando e
encorajando esses exercícios de piedade, dos quais brotam sem dúvida para o
povo que vos foi confiado frutos salutares. Sobretudo, não permitais - como
alguns pretendem, ou com a desculpa de renovação da liturgia, ou falando com
leviandade de uma eficácia e dignidade exclusivas dos ritos litúrgicos - que as
Igrejas sejam fechadas durante as horas não destinadas às funções públicas,
como já acontece em algumas regiões; que a adoração e a visita ao santíssimo
sacramento sejam menosprezadas; que se desaconselhe a confissão dos pecados
feita com o fim único de devoção; que se desleixe, especialmente entre a
juventude, o culto da virgem Mãe de Deus, que, no dizer dos santos, é sinal de
predestinação. São esses frutos envenenados, sumamente nocivos à piedade
cristã, que repontam de ramos infectos de uma árvore sã; é necessário, por
isso, extirpá-los, para que a seiva da árvore possa nutrir somente frutos agradáveis
e ótimos.
162.
Visto que as opiniões manifestadas por alguns a propósito da confissão
freqüente são de todo alheias ao Espírito de Cristo e de sua esposa imaculada,
e verdadeiramente funestas para a vida espiritual, recordamos o que a propósito
escrevemos, com pesar, na encíclica "Mystici Corporis"; e insistimos de novo
para que proponhais à séria meditação e à docil atuação dos vossos rebanhos e
especialmente dos candidatos ao sacerdócio e do jovem clero, quanto ali vos
dissemos em graves palavras.
163.
Zelai, pois, de modo particular, para que muitíssimos, não só do clero mas
ainda do laicato, e especialmente os pertencentes aos sodalícios religiosos e
às fileiras da Ação católica, tomem parte nos retiros mensais e nos exercícios
espirituais realizados em determinados dias para incrementar a piedade. Como
dissemos acima, esses exercícios espirituais são utilíssimos e até necessários,
para instilar nas almas a genuína piedade, e para formá-las à santidade, de
modo que possam haurir da sagrada liturgia benefícios mais eficazes e
abundantes.
164.
Quanto aos vários modos sob os quais se costuma praticar esses exercícios, fique
bem conhecido e claro a todos, que na Igreja terrena, como na celeste, há
"muitas moradas"; (164) e que a ascética não pode ser monopólio de
ninguém. Um é o Espírito, o qual, porém, "sopra onde quer";(165) e
com diversos dons e por diversas vias dirige as almas por ele iluminadas à
consecução da santidade. A sua liberdade e a ação sobrenatural do Espírito
Santo nelas seja coisa sacrossanta, que a ninguém é lícito, a nenhum título,
perturbar e conculcar.
165. É
sabido, entretanto, que os exercícios espirituais de santo Inácio foram
plenamente aprovados e insistentemente recomendados pelos nossos predecessores
por causa de sua admirável eficácia; e nós, também, pela mesma razão, os
aprovamos e recomendamos, como presentemente com prazer o tornamos a fazer.
166. É
absolutamente necessário, porém, que a inspiração a seguir e praticar
determinados exercícios de piedade, venha do Pai das luzes, do qual provém todo
bem, e todo dom perfeito;(166) e disso será índice a eficácia com a qual
servirão para que o culto divino seja sempre mais amado e amplamente promovido,
e os fiéis sejam solicitados por um mais intenso desejo à participação dos
sacramentos e à devida honra e respeito de todas as coisas sagradas. Se eles,
ao contrário, se transformassem em obstáculo ou se revelassem em contraste com
os princípios e normas do culto divino, então sem dúvida se deveria tê-los como
não ordenados por pensamento reto, nem guiados por zelo iluminado.
167. Além
disso, há outros exercícios de piedade que, se bem não pertençam a rigor e de
direito à sagrada liturgia, se revestem de particular dignidade e importância,
de modo que são tidos por insertos no quadro litúrgico, e gozam de repetidas
aprovações e louvores desta Sé Apostólica e dos bispos. Entre esses se devem
enumerar as orações que se costuma fazer durante o mês de maio em honra da
virgem Mãe de Deus, ou durante o mês de junho em honra do sacratíssimo coração
de Jesus, os tríduos e novenas, a "Via sacra" e outros semelhantes.
168.
Essas piedosas práticas, que exercitam o povo cristão a uma assídua freqüência
do sacramento da penitência e a uma devota participação no sacrifício
eucarístico e na mesa divina, como também à meditação dos mistérios da nossa
Redenção e à imitação dos grandes exemplos dos santos, por isso mesmo contribuem
com fruto salutar para a nossa participação no culto litúrgico.
169. Por
isso faria obra perniciosa e de todo errônea quem ousasse temerariamente
assumir a reforma desses exercícios de piedade, para enquadrá-los apenas nos
esquemas litúrgicos. É necessário, todavia, que o espírito da sagrada liturgia
e os seus preceitos influam beneficamente neles, para evitar que aí se
introduza algo de inepto ou de indigno ao decoro da casa de Deus, ou seja em
detrimento das sagradas funções e contrário à sã piedade.
170.
Cuidai, pois, veneráveis irmãos, para que essa pura e genuína piedade prospere
sob os vossos olhos, e floresça sempre mais. Não vos canseis, sobretudo, de
inculcar a cada um que a vida cristã não consiste na multiplicidade e variedade
das orações e dos exercícios de piedade, mas acima de tudo em que eles
contribuam realmente para o progresso espiritual dos fiéis e ao incremento de
toda a Igreja, porquanto o Pai Eterno "nos elegeu nele (Cristo) antes da
fundação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença". (167)
Devem, pois, tender todas as nossas orações e todas as nossas práticas devotas
a dirigir todos os nossos recursos espirituais à realização desse supremo e
nobilíssimo fim.
II.
Espírito litúrgico e apostolado litúrgico
171. Nós
vos exortamos instantemente, veneráveis irmãos, a que, desfeitos os erros e a
falsidade, e proibido tudo o que está fora da verdade e da ordem, promovais as
iniciativas que dão ao povo um mais profundo conhecimento da sagrada liturgia,
de modo que ele possa mais adequada e mais facilmente participar dos ritos
divinos, com disposição verdadeiramente cristã.
172. É
necessário, antes de tudo, empenhar-vos por que todos obedeçam com a devida
reverência e fé aos decretos publicados pelo concílio de Trento, pelos
pontífices romanos, pela Congregação dos ritos, e a todas as disposições dos
livros litúrgicos naquilo que respeita à ação externa do culto público.
173. Em
todas as coisas da liturgia devem brilhar sobretudo estes três ornamentos de
que fala o nosso predecessor Pio X: a santidade, que rejeita toda influência
profana; a nobreza das imagens e das formas, às quais serve toda arte genuína e
superior; a universalidade, enfim, a qual - conservando os legítimos usos e
costumes regionais - exprime a unidade católica da Igreja.(168)
174.
Desejamos e recomendamos calorosamente, ainda uma vez, o decoro dos sagrados
edifícios e altares. Sinta-se cada um animado pela palavra divina: "O zelo
de tua casa me devora"(169) e se empenhe segundo as suas forças para que tudo,
quer nos sagrados edifícios, quer nas vestes e nas alfaias litúrgicas, ainda
que não brilhe por excessiva riqueza e esplendor, seja, todavia, apropriado e
limpo, estando tudo consagrado à divina Majestade. Se já reprovamos, acima, o
modo não reto de proceder daqueles que, a pretexto de restaurar o antigo,
querem excluir dos templos as imagens sagradas temos que é nossa obrigação
repreender a piedade não bem formada daqueles que, nas Igrejas e em seus
próprios altares, propõem à veneração, sem justo motivo, múltiplos simulacros e
efígies; daqueles que expõem relíquias não reconhecidas pela legítima
autoridade; daqueles, enfim, que insistem em coisas particulares e de pouca
importância, enquanto descuram as principais e necessárias, e, assim, tornam
ridícula a religião, e envilecem a gravidade do culto.
175.
Lembramos ainda o decreto "sobre novas formas de culto e de devoção a não
introduzir",(170) cuja religiosa observância recomendamos à vossa
vigilância.
176.
Quanto à música, observem-se escrupulosamente as determinadas e claras normas
emanadas desta Sé Apostólica. O canto gregoriano que a Igreja romana considera
coisa sua, porque recebido da antiga tradição e guardado no correr dos séculos
sob a sua cuidadosa tutela e que propõe aos fiéis como coisa também deles,
prescrito como é de modo absoluto em algumas partes da liturgia,(171) não só
acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes
contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes. A
esse propósito nossos predecessores de imortal memória, Pio X e Pio XI,
estabeleceram - e nós de bom grado confirmamos com a nossa autoridade as
disposições por eles dadas - que nos seminários e nos Institutos religiosos
seja cultivado com estudo e diligência o canto gregoriano, e que, ao menos nas
Igrejas mais importantes, sejam restauradas as antigas "Scholae
cantorum"; como já foi feito com feliz resultado em não poucos
lugares.(172)
177. Além
disso, "para que os féis participem mais ativamente do culto divino, seja
restaurado o canto gregoriano até no uso popular na parte que respeita ao povo.
E urge verdadeiramente que os fiéis assistam às sagradas cerimônias não como
espectadores mudos e estranhos, mas penetrados, intimamente, da beleza da
liturgia... que alternem, segundo as normas prescritas, sua voz com a voz do
sacerdote e dos cantores; se isso graças a Deus se verificar, então não
acontecerá mais que o povo responda apenas com um leve e submisso murmúrio às
orações comuns ditas em latim e em língua vulgar".(173) A multidão que
assiste atentamente ao sacrifício do altar, no qual nosso Salvador, junto com
os seus filhos remidos pelo seu sangue, canta o epitalâmio da sua imensa
caridade, certamente não poderá calar, pois "cantar é proprio de quem
ama",(174) e como já dizia o provérbio antigo: "Quem canta bem, reza
duas vezes". Assim, a Igreja militante, clero e povo juntos, une a sua voz
aos cantos da Igreja triunfante e aos coros angélicos, e todos juntos cantam um
magnífico e eterno hino de louvor à Santíssima Trindade, como está escrito:
"Com os quais te imploramos que sejam ouvidas ainda as nossas
vozes".(175)
178. Não
se pode, todavia, asseverar que a música e o canto moderno devam ser de todo
excluídos do culto católico. Aliás, se nada têm de profano e de inconveniente à
santidade do lugar e da ação sagrada, nem derivam de uma procura vã de efeitos
extraordinários, certamente devemos abrir-lhes as portas de nossas Igrejas,
podendo ambos contribuir não pouco para o esplendor dos ritos sagrados, para a
elevação das mentes e, ao mesmo tempo, para a verdadeira devoção.
179. Nós
vos exortamos ainda, veneráveis irmãos, a que tomeis cuidado em promover o
canto religioso popular e a sua acurada execução feita com a dignidade
conveniente, podendo isso estimular e aumentar a fé e a piedade das populações
cristãs. Suba ao céu o canto uníssono e possante de nosso povo como o fragor
das ondas do mar,(176) expressão canora e vibrante de um só coração e uma só
alma, (177) como convém a irmãos e filhos de um mesmo Pai.(180). O que dissemos
da música, se aplica às outras artes e especialmente à arquitetura, à escultura
e à pintura. Não se devem desprezar e repudiar genericamente e por preconceitos
as formas e imagens recentes, mais adaptadas aos novos materiais com os quais
são hoje confeccionados; mas, evitando com sábio equilíbrio o excessivo
realismo de uma parte e o exagerado simbolismo de outra, e tendo em conta as
exigências da comunidade cristã, mais do que o juízo e o gosto pessoal dos
artistas, é absolutamente necessário dar livre campo também à arte moderna, se
esta serve com a devida reverência e a devida honra aos sagrados edifícios e
ritos; de modo que ela possa unir a sua voz ao admirável cântico de glória que
os gênios cantaram nos séculos passados a fé católica. Não
podemos deixar, porém, por dever de consciência, de deplorar e reprovar aquelas
imagens e formas por alguns recentemente introduzidas, que parecem ser
depravação e deformação da verdadeira arte e que, muitas vezes, repugnam
abertamente ao decoro, à modéstia e à piedade cristã e ofendem,
lamentavelmente, o genuíno sentimento religioso; elas devem ser mantidas
absolutamente afastadas e postas fora das nossas igrejas como "em geral
tudo que não está em harmonia com a santidade do lugar".(178)
181.
Fiéis às normas e decretos dos pontífices, cuidai diligentemente, veneráveis
irmãos, de iluminar e dirigir a mente e a alma dos artistas, aos quais será
confiado hoje o encargo de restaurar e reconstruir tantas Igrejas destruídas ou
arruinadas pela violência da guerra; possam e queiram eles, inspirando-se na
religião, encontrar os motivos mais dignos e adaptados às exigências do culto;
assim, com efeito, felizmente acontecerá que as artes humanas, como vindas do
céu, brilhem com luz serena, promovam sumamente a humana civilização e
contribuam para a glória de Deus e a santificação das almas, pois que as artes
são, em verdade, como armas para a religião, quando servem "como
nobilíssimas servas do culto divino".(179)
182. Mas
há ainda uma coisa mais importante, veneráveis irmãos, que recomendamos de modo
especial à vossa solicitude e ao vosso zelo apostólico. Tudo o que diz respeito
ao culto religioso externo tem sua importância, mas urge sobretudo que os
cristãos vivam a vida litúrgica e alimentem e fortaleçam seu espírito
sobrenatural.
183.
Providenciai, pois, alacremente, porque o jovem clero seja formado na
inteligência das cerimônias sagradas, na compreensão de sua beleza e majestade,
e aprenda diligentemente as rubricas, em harmonia com a sua formação ascética,
teológica, jurídica e pastoral. E isso não somente por razões de cultura, não
apenas para que o seminarista possa um dia cumprir os ritos da religião com a
ordem, o decoro e a dignidade necessárias, mas sobretudo para que seja educado
em íntima união com Cristo sacerdote e se torne um santo ministro de santidade.
184.
Velai ainda de todo o modo para que, com os meios e subsídios que a vossa
prudência julgar mais aptos, sejam o clero e o povo uma só mente e uma só alma;
e, assim, o povo cristão participe ativamente da liturgia que se tornará em
verdade a ação sagrada, pela qual o sacerdote que atende ao cuidado das almas
em sua paróquia, unido com a assembléia do povo, renda ao Senhor o culto
devido.
185. Para
obter isso, será certamente útil que, piedosos meninos, bem instruídos sejam
escolhidos entre todas as classes de fiéis, para que, com desinteresse e boa
vontade, sirvam devota e assiduamente ao altar - encargo que deveria ser tido
em grande consideração pelos pais, ainda que de alta condição social e cultura.
Se esses jovens forem instruídos com o necessário cuidado e sob a vigilância de
um sacerdote para que cumpram este seu ofício com reverência e constância, e em
horas determinadas, tornar-se-á fácil o brotar entre eles de novas vocações
sacerdotais; e não se queixará o clero de não encontrar - como infelizmente
acontece por vezes até em regiões catolicíssimas - alguém que na celebração do
augusto sacrifício lhe responda e o sirva.
186.
Procurai, sobretudo, obter, com o vosso diligentíssimo zelo, que todos os fiéis
assistam ao sacrifício eucarístico e dele recebam os mais abundantes frutos de
salvação; exortai-os portanto assiduamente a dele participarem com devoção por
todos aqueles modos legítimos dos quais falamos acima. O augusto sacrifício do
altar é o ato fundamental do culto divino; é necessário, por isso, que ele seja
a fonte, o centro da piedade cristã. Considerai que não tereis jamais
suficientemente satisfeito ao vosso zelo apostólico senão quando virdes os
vossos filhos aproximarem-se em grande número do celestial banquete que é
"sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade". (180)
187. Para
que, pois, o povo cristão possa conseguir esses dons sobrenaturais, sempre com
maior abundância, instrui-o com zelo por meio de pregações oportunas e,
especialmente, com discursos e ciclos de conferências, com semanas de estudo e
com outras manifestações semelhantes, a respeito dos tesouros de piedade
contidos na sagrada liturgia. Para esse fim estarão certamente à vossa
disposição os membros da Ação católica, sempre prontos a colaborar com a hierarquia
em promover o reino de Jesus Cristo.
188. É
absolutamente necessário, porém, que em tudo isso vigieis atentamente a fim de
que, no campo do Senhor, não se introduza o inimigo para semear a cizânia no
meio do trigo,(181) para que, em outras palavras, não se infiltrem no vosso
rebanho os perniciosos e sutis erros de um falso "misticismo" e de um
nocivo "quietismo" - erros por nós já condenados como sabeis(182) - e
para que as almas não sejam seduzidas por um perigoso "humanismo",
nem se introduza uma falsa doutrina que altera a própria noção da fé, nem,
enfim, um excessivo "arqueologismo" em matéria litúrgica. Cuidai com
igual diligência por que não se difundam as falsas opiniões daqueles que
erradamente crêem e ensinam que a natureza humana de Cristo glorificada esteja
realmente e com a sua continua presença nos justificados, ou que uma graça
única e idêntica junte Cristo com os membros do seu Corpo.
189. Não
vos deixeis desanimar pelas dificuldades que nascem; jamais se desencoraje o
vosso zelo pastoral. "Fazei soar a trombeta em Sião, convocai a
assembléia, reuni o povo, santificai a Igreja, juntai os velhos, recolhei os
meninos e os recém-nascidos" (183) e fazei por todos os meios que se
encham em todos os lugares as Igrejas e os altares de cristãos, os quais, como
membros vivos unidos à sua Cabeça divina, sejam revigorados pelas graças dos
sacramentos, celebrem o augusto sacrifício com ele e por ele e dêem ao Eterno
Pai os louvores devidos.
EPÍLOGO
190.
Todas essas coisas, veneráveis irmãos, pretendíamos escrever-vos e o fazemos a
fim de que os nossos e os vossos filhos compreendam melhor e mais estimem o
preciosíssimo tesouro contido na sagrada liturgia - isto é, o sacrifício
eucarístico que representa e renova o sacrifício da cruz, os sacramentos, rios
de graça e de vida divina, e o hino de louvor que o céu e a terra elevam cada
dia a Deus.
191.
Seja-nos lícito esperar que estas nossas exortações excitem os tíbios e os
recalcitrantes não somente a um estudo mais intenso e iluminado da liturgia,
mas ainda a traduzir na prática da vida o seu espírito sobrenatural, como diz o
apóstolo: "Não queirais extinguir o Espírito".(184)
192.
Àqueles que um zelo excessivo leva muitas vezes a dizer e a fazer coisas que
nos pesa não poder aprovar, repetimos a advertência de são Paulo:
"Ponde tudo à prova; ficai com o que é bom";(185) e os admoestamos
com ânimo paterno a consentirem haurir o seu modo de pensar e de agir da
doutrina cristã, conforme os preceitos da imaculada esposa de Jesus Cristo e
mãe dos santos.
193. A
todos, enfim, lembramos a necessidade de uma generosa e fel obediência aos
pastores, aos quais compete o direito e incumbe o dever de regular toda a vida
da Igreja, sobretudo a espiritual. "Obedecei aos vossos superiores e
sede-lhes dóceis. Eles, com efeito, velam sobre as vossas almas, e disso
prestarão contas. Assim poderão fazê-lo com alegria e não gemendo".(186)
194. O
Deus que adoramos, e que "não é Deus de discórdia mas de paz"(187),
conceda, benigno a todos nós, participar neste exílio terreno, com uma só mente
e um só coração, na sagrada liturgia, a qual seja como que preparação e
prenúncio daquela celeste liturgia, com a qual, segundo confiamos, em companhia
da excelsa Mãe de Deus e dulcíssima mãe nossa, cantaremos: "Àquele que se
senta no trono e ao Cordeiro: louvor, honra e gloria por todos os
séculos".(188) Com essa
exultante esperança a vós todos e a cada um, veneráveis irmãos e aos rebanhos
confiados à vossa vigilância, como penhor dos dons celestes, e atestado da
nossa particular benevolência, concedemos com grandíssimo afeto a bênção
apostólica.
Dado em
Castel Gandolfo, junto de Roma, no dia 20 de novembro do ano de 1947, IX do
nosso pontificado.
PIO PP. XII
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