CARTA ENCÍCLICA
MIRARI VOS
DO PAPA GREGÓRIO XVI
DO PAPA GREGÓRIO XVI
Aos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos, Bispos e outros Ordinários
em paz e comunhão com a Santa Sé Apostólica.
em paz e comunhão com a Santa Sé Apostólica.
Veneráveis Irmãos, saúde e benção apostólica.
1. Creio-vos admirados, porque desde que sobre Nós
pesa o cuidado da Igreja universal, ainda não vos dirigimos Nossas cartas, como
o costume arraigado da Igreja e Nossa benevolência para convosco o reclamam. Mui
veemente era, em verdade, o desejo de abrir-vos Nosso coração e, ao
comunicar-vos Nossa palavra, fazer-vos ouvir aquela mesma voz, pela qual Nos
foi ordenado, na pessoa de Pedro, confirmar nossos irmãos (Lc 22,23). Mas bem
sabeis que a procela de males e aflições que nos combateu desde os primeiros
momentos de Nosso pontificado, ergueu-se, subitamente, qual vagalhão tão
impetuoso que, se não Nos deplorais qual náufrago da terrível conspiração dos
ímpios é mercê de um esforço da omnipotência divina. Com o coração alancado
pela tristíssima consideração de tantos males, não se tem ânimo para relembrar
tamanha amargura; preferimos, pois, bendizer ao Pai de toda consolação que,
humilhando os perversos, Nos livro do presente perigo e, acalmando a turbulenta
tempestade, Nos permitiu respirar. Então Nos propusemos a dar-vos conselhos
para pensar as chagas de Israel, mas o grande número de cuidados que pesou
sobre Nós, enquanto conciliávamos o restabelecimento da ordem pública, foi
causa de mais tardança. A insolência dos ímpios que tentaram, de novo, arvorar
a bandeira da rebelião, foi novo motivo de Nosso silêncio. E Nós, ainda que com
tristeza indizível, vimo-Nos obrigado a reprimir, com pulso firme, (1 Cor
4,21), a contumácia daqueles homens, cujo furor se exaltava de mais a mais,
longe de se abrandar pela constante impunidade e pela Nossa clemência. E desde
então podeis muito bem deduzir que Nossos cuidados se tornaram mais constantes.
Mas, havendo já tomado posse do pontificado na
Basílica de Latrão, consoante costume estabelecido por Nossos maiores, e que
fora retardada pelas causas supraditas, sem dar azo a mais delongas, damo-Nos
pressa em dirigir-vos a presente carta, testemunho de Nosso afeto para
convosco, neste dia gratíssimo, em que celebramos a solene festa da gloriosa
Assunção da Santíssima Virgem, a fim de que aquela que Nos foi protetora e
salvadora em gravíssimas calamidades, Nos seja propícia, iluminando-Nos o
intelecto com celeste inspiração, para dar-vos os conselhos mais conducentes à
santificação da grei cristã.
Lamentação dos males atuais
2. Em verdade, triste e com o coração dolorido,
dirigimo-Nos a vós, a quem vemos cheios de angústia, ao considerar a crueldade
dos tempos que fluem para com a religião que tanto estremeceis. Na verdade,
poderíamos dizer que esta é a hora do poder das trevas para joeirar como o
trigo, os filhos de escol (Lc 22,53); "a terra ficou infeccionada pelos
seus habitantes, porque transgrediram as leis, mudaram o direito, romperam a
aliança eterna" (Is 24,5). Referimo-Nos, Veneráveis Irmãos, aos fatos que
vedes com vossos próprios olhos e todos choramos com as mesmas lágrimas. A
maldade rejubila alegre, a ciência se levanta atrevida, a dissolução é infrene.
Menospreza-se a santidade das coisas sagradas, e o culto divino, que tanta
necessidade encerra, não é somente desprezado, mas também vilipendiado e
escarnecido. Por esses meios é que se corrompe a santa doutrina e se
disseminam, com audácia, erros de todo género. Nem as leis divinas, nem os
direitos, nem as instituições, nem os mais santos ensinamentos estão ao abrigo
dos mestres da impiedade.
Combate-se tenazmente a Sé de Pedro, na qual pôs
Cristo o fundamento de sua Igreja; forçam-se e rompem-se, momentaneamente, os
vínculos da unidade. Impugna-se a autoridade divina da Igreja e, espezinhados
os seus direitos, é submetida a razões terrenas; com suma injúria, fazem-na
objeto do ódio dos povos, reduzindo-a a torpe servidão. O clamoroso estrondo de
opiniões novas ressoa nas academias e liceus, que contestam abertamente a fé
católica, não já ocultamente e por circunlóquios, mas com guerra cura e
nefária; e, corrompidos os corações dos jovens pelos ensinamentos e exemplo dos
mestres, cresceram desproporcionadamente o prejuízo da religião e a depravação
dos costumes. Por isso, rompido o freio da religião santíssima, somente em
virtude da qual subsistem os reinos e se confirma o vigor de toda potestade,
vemos campear a ruína da ordem pública, a desonra dos governantes e a perversão
de toda autoridade legítima; e a origem de tantas calamidades devemos buscá-la
na ação simultânea daquelas sociedades, nas quais se depositou, como em sentina
imensa, quanto de sacrilégio, subversivo e blasfemo acumularam a heresia e a
impiedade em todos os tempos.
Para corrigi-los, os Bispos devem trabalhar unidos
à Cátedra de Pedro
3. Estas coisas, Veneráveis Irmãos, e outras
muitas, talvez de maior gravidade, que seria prolixo referi-las e que vós
conheceis perfeitamente, Nos obrigam a experimentar dor amarga e constante,
pois, constituído na Cátedra do Príncipe do Apóstolos, é mister que o zelo pela
casa de Deus Nos consuma. E sabedores, em razão de Nosso múnus, de que não é
suficiente deplorarem-se tantos males, mas que se faz necessário remediá-los
com todas as nossas forças, recorremos à vossa fé e imploramos a vossa
solicitude pela grei católica, Veneráveis Irmãos, porque a vós cabe a virtude e
a religião, a singular prudência e constância, que Nos encorajam e consolam em
meio a tantas desgraças.
A Nós toca o dever de levantar a voz e envidar
todos os esforços, para que o javali não destrua a vinha e o lobo não destroce
o rebanho; devemos dar-lhes pábulo tão salutar, que nem de leve sequer sejam
suspeitos. Longe de Nós, e mui longe, que os pastores faltem ao seu dever,
abandonando covardemente as ovelhas, quando tantos males nos afligem e tantos
perigos nos cercam, e que, sem cuidar da grei, se manchem com o ócio e a
negligência. Façamos, pois, causa comum, digo melhor, a de Deus e, de espírito
uno, porfiemos contra o inimigo comum, com uma só intenção com um só esforço.
4. Tudo isto cumprireis plenamente, se, segundo
vosso dever, cuidardes de vós mesmos e da doutrina, tendo sempre presente que a
Igreja universal repele toda novidade (S. Caelest. PP., ep. 21 ad episc.
Galliar.) e que, conforme conselho do Pontífice Santo Agatão, nada se deve
tirar daquelas coisas que hão sido definidas, nada mudar, nada acrescentar, mas
que se devem conservar puras, quanto à palavra e quanto ao sentido (Ep. ad imp.
apud Labb. Tomo II, p. 235, Ed. Mansi). Daqui surgirá a firmeza da unidade, que
se radica, em seu fundamento, na Cátedra de Pedro, a fim de que todos encontrem
baluarte, segurança, porto bonançoso e tesouro de inumeráveis bens, justamente
onde as Igrejas possuem a fonte de seus direitos (S. Innocent. Papa, ep. II,
apud Constat.). Para reprimir, portanto, a audácia dos que ora intentam
infringir os direitos desta Sé, somente na qual se apoiam e recebem vigor,
preciso é incular um profundo sentimento de fidelidade e veneração para com
ela, clamando, a exemplo de São Cipriano, que em vão protesta estar na Igreja o
que abandonou a Cátedra de Pedro, sobre a qual está fundada (S. Cypr., De
unitate eccles.).
5. Deveis, pois, trabalhar e vigiar assiduamente,
para guardar o depósito da fé, apesar das tentativas dos ímpios, que se
esforçam por dissimulá-lo e desvirtuá-lo. Tenham todos presente que o julgar da
sã doutrina, que os povos têm de crer, e o regime e o governo da Igreja
universal é da alçada do Romano Pontífice, a quem foi dado por Cristo pleno
poder, para apascentar, reger e governar a Igreja universal, segundo os
ensinamentos legados pelos Padres do Concílio de Florença (Sess. 25, in
definit. apud Labb., tom. 18, col. 527. Edit. Venet.). Portanto, todo Bispo
deve aderir fielmente à Cátedra de Pedro, guardar o depósito da fé santa e
apascentar religiosamente o rebanho de Deus que lhe foi confiado. Os
presbíteros estejam sujeitos aos Bispos, considerando-os, segundo aconselha São
Jerónimo, como pais da alma (Ep. 2 ad Nepot., a. 1, 24); e jamais esqueçam que
os cânones mais antigos lhes vedam o desempenho de qualquer ministério, o
ensino e a pregação sem licença do Bispo, a cujo cuidado foi confiado o povo e
de quem se hão de pedir contas das almas (Ex can., app 33 apud Labb., tomo I,
p. 38, edt. Mansi.). Por fim, tenha-se por certo e estável que, quantos
intentarem contra esta ordem estabelecida, enquanto depender de sua parte,
perturbam o estado da Igreja.
Imutabilidade da doutrina e disciplina da Igreja
6. Reprovável seria, na verdade, e muito alheio à
veneração com que se devem acolher as leis da Igreja, condenar, somente por
néscio capricho de opinião, a doutrina que foi por ela sancionado, na qual
estão contidas a administração das coisas sagradas, a regra dos costumes e dos
direitos da Igreja, a ordem e a razão dos seus ministros, ou então acoimá-la de
oposicionista a certos princípios de direito natural, julgando-a deficiente e
imperfeita, ou ainda sujeitando-a à autoridade civil.
Constando, com efeito, como reza o testemunho dos
Padres do Concílio de Trento (Sess. 13, dec. de Eucharistia in proœm.), que a
Igreja recebeu sua doutrina de Jesus Cristo e dos seus Apóstolos, e que o
Espírito Santo a está continuamente assistindo, ensinando-lhe toda a verdade, é
por demais absurdo e altamente injurioso dizer que se faz necessária uma certa
restauração ou regeneração, para fazê-la voltar à sua primitiva incolumidade,
dando-lhe novo vigor, como se fosse de crer que a Igreja é passível de defeito,
ignorância ou outra qualquer das imperfeições humanas; com tudo isto pretendem
os ímpios que, constituída de novo a Igreja sobre fundamentos de instituição
humana, venha a dar-se o que São Cipriano tanto detestou: que a Igreja, coisa
divina, se torne coisa humana (Ep. 52, edit. Baluz.). Pensem, pois, os que tal
supõem, que somente ao Romano Pontífice como atesta São Leão, tem sido confiada
a constituição dos cânones; e que somente a ele, que não a outro, compete
julgar dos antigos decretos dos cânones, medir os preceitos dos seus
antecessores para moderar, após diligente consideração, aquelas coisas, cuja
modificação é exigida pela necessidade dos tempos (Ep. ad. episc. Lucaniae).
Defesa do celibato clerical
7. Reclamamos, aqui, também a vossa invicta
constância para combater a torpíssima conspiração que se tem tramado contra o
celibato clerical, a qual, como sabeis, cresce de momento para outro, porque
com os falsos filósofos do nosso século fazem coro alguns eclesiásticos que,
esquecidos da sua dignidade e estado, e aliciados pela voluptuosidade, chegaram
a licenciosidade tal, a ponto de em alguns lugares se atreverem a pedir
publicamente faculdade aos príncipes para infringir tão santa disciplina. Mas
causa-nos rubor falar extensamente de intentos tão torpes e, confiado em vossa
piedade, pedimo-vos que, com todas as forças e apoiados nas prescrições dos
sagrados cânones, custodieis, defendais, e vindiqueis, em toda sua integridade,
aquela lei de tamanha gravidade, contra a qual os inimigos assestam seus
dardos.
Caracteres do matrimônio cristão
8. Reclama também nosso especial cuidado aquela
união santa dos cristãos, chamada pelo Apóstolo sacramento grande em Cristo e
na Igreja (Ef 5,33; Heb 13,4), para que não se diga e nem se tente dizer algo
quer contra a santidade quer contra a força indissolúvel deste vínculo. O mesmo
Nos recordara Nosso antecessor Pio VIII, de santa memória, com não pouca
insistência; mão obstante, seus esforços não foram bastantes para suster todo o
mal. Devemos, pois, ensinar aos povos que o matrimônio, legitimamente
contraído, já não pode ser dissolvido, e que os unidos pelo matrimônio forma,
por vontade de Deus, sociedade perpétua com vínculos tão íntimos que só a morte
os pode dissolver. Tenham presente que o matrimônio pertence às coisas
sagradas, e está sujeito à Igreja; tenham-se presentes as leis que sobre ele há
ditado a Igreja; obedeçam-lhe santa e escrupulosamente, pois dela dependem a
eficácia, força e justiça da união. Não admitam, de forma alguma, algo que
esteja em oposição aos sagrados cânones ou aos decretos dos concílios, pois não
desconhecem o mau resultado que necessariamente hão de acarretar as uniões que
se fazem contra a disciplina da Igreja, sem implorar a proteção de Deus,
somente por leviandade, sem pensar no sacramento e nem nos mistérios que nele
são significados.
Condenação do indiferentismo religioso
9. Outra causa que tem acarretado muitos dos males
que afligem a Igreja é o indiferentismo, ou seja, aquela perversa teoria
espalhada por toda parte, graças aos enganos dos ímpios, e que ensina poder-se
conseguir a vida eterna em qualquer religião, contanto que se amolde à norma do
reto e honesto. Podeis, com facilidade, patentear à vossa grei esse erro tão
execrável, dizendo o Apóstolo que há um só Deus, uma só fé e um só baptismo (Ef
4, 5): entendam, portanto, os que pensam poder-se ir de todas as partes ao
porto da Salvação que, segundo a sentença do Salvador, eles estão contra
Cristo, já que não estão com Cristo (Lc 11,23), e os que não colhem com Cristo
dispersam miseramente, pelo que perecerão infalivelmente os que não tiverem a
fé católica e não a guardarem íntegra e sem mancha (Simbol. Sancti Athanasii);
ouçam S. Jerónimo, do qual se diz que quanto alguém tentara atraí-lo para a sua
causa, dizia sempre com firmeza: O que está unido à Cátedra de Pedro é o meu
(S. Hier., ep. 57). E nem alimentem ilusões porque estão baptizados; a isto
calha a resposta de Santo Agostinho que diz não perder o sacramento sua forma
quando está amputado da vide; porém, de que lhe serve, se não tira sua vida da
raiz? (In Ps. contra part. Donat.).
Delírio da liberdade de consciência
10. Dessa fonte lodosa do indiferentismo promana
aquela sentença absurda e errónea, digo melhor disparate, que afirma e defende
a liberdade de consciência. Este erro corrupto abre alas, escudado na imoderada
liberdade de opiniões que, para confusão das coisas sagradas e civis, se
estendo por toda parte, chegando a imprudência de alguém se asseverar que dela
resulta grande proveito para a causa da religião. Que morte pior há para a
alma, do que a liberdade do erro! dizia Santo Agostinho (Ep. 166). Certamente,
roto o freio que mantém os homens nos caminhos da verdade, e inclinando-se
precipitadamente ao mal pela natureza corrompida, consideramos já escancarado
aquele abismo (Apoc 9,3) do qual, segundo foi dado ver a São João, subia fumaça
que entenebrecia o sol e arrojava gafanhotos que devastavam a terra. Daqui
provém a efervescência de ânimo, a corrupção da juventude, o desprezo das
coisas sagradas e profanas no meio do povo; em uma palavra, a maior e mais
poderosa peste da república, porque, segundo a experiência que remonta aos
tempos primitivos, as cidade que mais floresceram por sua opulência, extensão e
poderio sucumbiram, somente pelo mal da desbragada liberdade de opiniões,
liberdade de ensino e ânsia de inovações.
Monstruosidade da liberdade de imprensa
11. Devemos tratar também neste lugar da liberdade
de imprensa, nunca condenada suficientemente, se por ela se entende o direito
de trazer-se à baila toda espécie de escritos, liberdade que é por muitos
desejada e promovida. Horroriza-Nos, Veneráveis Irmãos, o considerar que
doutrinas monstruosas, digo melhor, que um sem-número de erros nos assediam,
disseminando-se por todas as partes, em inumeráveis livros, folhetos e artigos
que, se insignificantes pela sua extensão, não o são certamente pela malícia
que encerram, e de todos eles provém a maldição que com profundo pesar vemos
espalhar-se por toda a terra. Há, entretanto, oh que dor! quem leve a ousadia a
tal requinte, a ponto de afirmar intrepidamente que essa aluvião de erros que
se está espalhando por toda parte é compensada por um ou outro livro que, entre
tantos erros, se publica para defender a causa da religião. É por toda forma
ilícito e condenado por todo direito fazer um mal certo e maior, com pleno
conhecimento, só porque há esperança de um pequeno bem que daí resulte.
Porventura dirá alguém que se podem e devem espalhar livremente venenos ativos,
vendê-los publicamente e dá-los a tomar, porque pode acontecer que, quem os
use, não seja arrebatado pela morte?
12. Foi sempre inteiramente distinta a disciplina
da Igreja em perseguir a publicação de livros maus, desde o tempo dos
Apóstolos, dos quais sabemos terem queimado publicamente muitos deles. Basta
ler as leis que a respeito deu o V. Concílio de Latrão e a constituição que ao
depois foi dada a público por Leão X, de feliz recordação, para que o que foi
inventado para o progresso da fé e a propagação das belas artes não sirva de
entrave e obstáculo aos Fiéis em Cristo (Act. Concílio Lateran. V, ses. 10; e
Constituição Alexand. VI "Inter multiplices").O mesmo procuraram os
Padres de Trento que, para trazer remédio a tanto mal, publicaram um
salubérrimo decreto para compor um índice de todos aqueles livros que, por sua
má doutrina, deviam ser proibidos (Conc. Trid. sess. 18 e 25). Há que se lutar
valentemente, disse Nosso predecessor Clemente XIII, de piedosa memória; há que
se lutar com todas as nossas forças, segundo o exige a gravidade do assunto,
para exterminar a mortífera praga de tais livros, pois o erro sempre procurará
onde se fomentar, enquanto não perecerem no fogo esses instrumentos de maldade
(Encíclica "Christianae", 25 nov. 1776, sobre livros proibidos). Da
constante solicitude que esta Sé Apostólica sempre revelou em condenar os
livros suspeitos e daninhos, arrancando-os às suas mãos, deduzam, portanto,
quão falsa, temerária e injuriosa à Santa Sé e fecunda em males gravíssimos
para o povo cristão é aquela doutrina que, não contente com rechaçar tal
censura de livros como demasiado grave e onerosa, chega até ao cúmulo de
afirmar que se opõe aos princípios da reta justiça e que não está na alçada da
Igreja decretá-la.
Condenação da rebeldia contra as legítimas
autoridades
13. Mas, tendo sido divulgadas, em escritos que
correm por todas as partes, certas doutrinas que lançam por terra a fidelidade
e submissão que se devem aos príncipes, com o que se alenta o fogo da rebelião,
deve-se vigiar atentamente para que os povos, enganados, não se afastem do
caminho do bem. Saibam todos que, como disse o apóstolo, toda autoridade vem de
Deus e todas as que existem foram ordenadas por Deus. Aquele, pois, que resiste
à autoridade, resiste à ordem de Deus e se condena a si mesmo (Rom 13, 2).
Portanto, os que com torpes maquinações de rebelião se subtraem à fidelidade
que devem aos príncipes, querendo tirar-lhes a autoridade que possuem, ouçam
como contra eles clamam todos os direitos divinos e humanos.
14. Não era este, certamente, o proceder dos
primeiros cristãos, os quais, para obviar a tão grave falta, mesmo que em meio
das terríveis perseguições suscitadas contra eles, se distinguiram por seu zelo
em obedecer aos imperadores e em lutar pela integridade do império, como
provaram, quer no pronto cumprimento de quanto lhes era ordenado (sempre que
não se opusesse à sua fé de cristãos), quer vertendo seu sangue nas batalhas,
pelejando contra os inimigos do império. Os soldados cristãos, diz Santo
Agostinho, serviram fielmente aos imperadores infiéis, mas quando se tratava da
causa de Cristo, outro imperador não reconheceram que o dos céus. Distinguiam o
Senhor eterno do senhor temporal; e não obstante, pelo primeiro obedeciam ao
segundo (In Ps. 124. n. 7.). Assim o entendia certamente o glorioso mártir S.
Maurício, invicto chefe da legião Tebana, quando, segundo refere Euquério,
disse ao seu imperador: Somos, ó imperador, teus soldados, mas também servos
que com liberdade confessamos a Deus; vamos morrer, e não nos rebelamos; nas
mãos temos nossas armas, e não resistimos porque antes de nos rebelarmos
preferimos morrer (S. Eucher. apud Ruinart, Act. ss. mm. de Ss Maurit. et Soc.,
n. 4). E esta conduta dos primeiros cristão brilha com esplêndidos fulgores;
pois é de se notar que, além da razão, não faltava aos cristãos, nem a força do
número nem o esforço da valentia, se quisessem lutar contra seus inimigos.
Somos de ontem, diz Tertuliano, e já ocupamos todas as vossas casas, cidades,
ilhas, municípios, os mesmos acampamentos com suas tribos e decúrias, os
palácios, o senado, o fórum... De que luta não seremos capazes, mesmo com
forças inferiores, os que morremos tão alegremente, só porque em nossa
disciplina é mais lícito morrer do que matar? Se, negando-vos a cooperação de
nossas forças, nos retirássemos a um lugar distante da terra, a perda de tantos
e tais cidadãos teria enfraquecido vosso domínio, digo melhor, quiçá o
houvésseis perdido; não há duvidar que vos espantareis com vossa própria
solidão... não encontrareis a quem comandar, teríeis mais inimigos que
cidadãos; mas agora, ao contrário, deveis ao grande número dos cristãos o
terdes menos inimigos (In apologet., cap. 37).
15. Estes exemplos preclaros de inquebrantável
sujeição aos príncipes, baseados nos santíssimos preceitos da religião cristã,
condenam a insolência e a gravidade dos que, instigados por torpe desejo de
liberdade sem freios, outra coisa não se propõem do que calcar os direitos dos
príncipes e reduzir os povos a mísera escravidão, enganando-os com aparências
de liberdade. Este foi o objectivo dos valdenses, dos begardos, dos wiclefitas
e de outros filhos de Belial que foram a desonra do género humano, tantas vezes
anatematizados pela Sé Apostólica. Sem outro motivo senão o de se congratularem
com Lutero por haver rompido todo vínculo de dependência, esses inovadores se
esforçam audazmente por perpetrar as maiores maldades.
Males da separação da Igreja e do Estado
16. Mais grato não é também à religião e ao
principado civil o que se pode esperar do desejo dos que procuram separar a
Igreja e o Estado, e romper a mútua concórdia do sacerdócio e do império.
Sabe-se, com efeito, que os amadores da falsa liberdade temeram ante a
concórdia, que sempre produziu resultados magníficos, nas coisas sagradas e
civis.
Liberdade do mal que certas associações apregoam
17. A muitas outras coisas de não pouca
importância, que Nos trazem preocupado e enchem de dor, devem-se acrescer
certas associações ou assembleias, as quais, confederando-se com sectários de
qualquer religião, simulando sentimentos de piedade e afecto para com a
religião, mas na verdade possuídas inteiramente do desejo de novidades e de
promover sedições em toda parte, pregam liberdades de tal jaez, suscitam
perturbações nas coisas sagradas e civis, desprezando qualquer autoridade, por
mais santa que seja.
O remédio desses males está na palavra de Deus
18. Com o coração, pois, transido de tristeza, mas
confiante inteiramente n'Aquele que manda aos ventos e acalma as tempestades,
escrevemos estas coisas, Veneráveis Irmãos, para que, armados da couraça da fé,
combatais galhardamente os combates do Senhor. É dever vosso manter dentro dos
limites todo aquele que se levanta contra a ciência do Senhor. Pregai a palavra
de Deus, para que tenham pasto saudável os que desejam a justiça; pois fostes
eleitos para serdes cultivadores diligentes da vinha do Senhor; trabalhai,
todos unidos, com empenho, para arrancar as más raízes do campo que vos foi
confiado e para que, reprimido todo germe de vício, ali mesmo floresça copiosa
a messe das virtudes. Abraçai, de modo especial, e com afeto paternal, aos que
se dedicam à ciência sagrada e à filosofia, exortando-os e guiando-os a fim de
que não aconteça que, estribando-se imprudentemente em suas forças, se afastem
do caminho da verdade, para seguir as sendas dos ímpios. Entendam que Deus é
Senhor da sabedoria e emendador dos sábios (Sab. 7, 15) e que é impossível
compreender a Deus sem Deus (S. Irineu, lib. 14, cap. 10); Deus, que pelo Verbo
ensina aos homens a conhecer Deus. É próprio de homens soberbos ou antes
néscios querer sujeitar ao critério humano os mistérios da fé, que ultrapassam
a capacidade humana, confiando unicamente em nossa razão, que por natureza é
débil e fraca.
Os governantes devem auxiliar a Igreja
19. Finalmente, secundem os príncipes estes nossos
santos desejos de feliz êxito das coisas sagradas e profanas com seu poder e
autoridade, pois não a receberam somente para o governo temporal, mas também
para a defesa e guarda da Igreja. Saibam que, quanto se faz em favor da Igreja,
destina-se, ao mesmo tempo, ao bem-estar e à paz do império; convençam-se
sempre mais que devem maior estima à causa da fé que à do reino, e que serão
maiores se, segundo S. Leão, à sua coroa de reis se ajuntar a da fé. Já que tem
sido constituídos como pais e tutores dos povos, proporcionar-lhes-ão
verdadeira felicidade e tranqüilidade, se dirigirem seus cuidados especialmente
para conservar incólume a religião daquele Senhor, cujo poder está expressado
naquela passagem do salmo: Rei dos reis e Senhor dos que dominam.
Esperança em Maria
20. E ara que todos estes desejos se realizem
propícia e felizmente, elevemos nossos olhares e mãos à Santíssima Virgem
Maria, a única que destruiu todas as heresias e constitui a nossa maior esperança
(S. Bernardo, sem. De nativitate B. M. V., 57). Peça Ela mesma, com sua
intercessão poderosa, para que nossos desejos, conselhos e ações sejam coroados
do êxito mais feliz, nesta grande necessidade do povo cristão. Peçamos
humildemente aos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo o dom de permanecermos firmes e
constantes em não permitir e nem querer outro fundamento que aquele sobre o
qual estamos cimentados. Apoiado nesta doce esperança, esperamos que o autor e
consumador da fé, Cristo Jesus, nos consolará nestas grandes tribulações, e, em
penhor do divino auxílio, damo-vos, Veneráveis Irmãos, e às ovelhas que vos
foram confiadas, a Benção Apostólica.
Dada em Roma, em Santa Maria Maior, dia da Assunção
da Bem-aventurada Virgem Maria, 14 de Agosto do ano do Senhor de 1832, segundo
de Nosso Pontificado.
Gregório XVI, Papa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário