domingo, 13 de maio de 2012

Da gravidade e castigo dos pecados do padre


  

Santo Afonso Maria de Ligório


I - Gravidade dos pecados do padre

É extremamente grave o pecado do padre, porque peca com pleno conhecimento:sabem bem o mal que faz. Ensina Santo Tomás que o pecado dos fiéis é mais grave que o dos infiéis, precisamente porque os fiéis conhecem melhor a verdade; ora, as luzes dum simples fiel são bem inferiores às de um sacerdote. O padre é tão instruído na lei de Deus, que a ensina aos outros: Porque os lábios do sacerdote hão de guardar a ciência, e é da sua boca que os outros aprenderão a lei.

É muito grave o pecado de quem conhece a lei, porque de nenhum modo pode desculpar-se com a ignorância. Pecam os pobres seculares, mas no meio das trevas do mundo, afastados dos sacramentos, pouco instruídos nas coisas espirituais, envolvidos nos negócios do século. Como apenas têm um fraco conhecimento de Deus, não vêem bem o mal que fazem, pecando: sagittant in obscuro, — arremessam as suas frechas na obscuridade como diz Davi. Os padres ao contrário estão cheios de luz, pois eles mesmo são os luzeiros destinados a alumiar os outros: Vós sois o luz do mundo.
 Sem dúvida, devem os padres estar muito instruídos, depois de terem lido tantos livros, ouvido tantos sermões, feito tantas meditações e recebido dos seus superiores tantos avisos! Numa palavra, foi-lhes dado conhecer a fundo os divinos mistérios.
 Sabem pois perfeitamente quanto Deus merece ser servido e amado, conhecem a malícia do pecado mortal, que é um inimigo tão contrário a Deus que, se Deus pudesse ser aniquilado, o seria por um só pecado mortal, como ensina S. Bernardo: “O pecado tende a destruir a divina bondade”; e noutro lugar: “O pecado, quanto lhe é possível, aniquila a Deus”. Diz o autor da Obra imperfeita que o pecador, tanto quanto depende da sua vontade, faz morrer Deus”. De fato, ajunta o Pe. Medina, o pecado mortal tanto desonra e desagrada a Deus que, se Deus fosse susceptível de tristeza, o pecado o faria morrer de pura dor. Tudo isso sabe o padre muito bem, e conhece por igual a obrigação em que está, como padre, cumulado de benefícios de Deus, de o servir e amar. Assim, diz S. Gregório, quanto melhor vê a enormidade da injúria que faz a Deus, pecando, mais grave é o seu pecado.
 Todo o pecado da parte do padre é um pecado de malícia, semelhante ao dos anjos, que pecaram na presença da luz. É ele o anjo do Senhor, diz S.Bernardo, falando do padre, e de certo modo peca no Céu, pecando no estado eclesiástico. Peca no meio da luz, o que faz que o seu pecado, como fica dito, seja um pecado de malícia: não pode pois alegar ignorância, porque sabe que mal é o pecado mortal; também não pode alegar fraqueza, porque conhece os recursos para se tornar forte, se quiser valer-se deles. Se o não quer, a culpa é sua: Não quis entender para praticar o bem. Pecado de malícia, diz Sta. Teresa, é aquele a que o pecador se decide cientemente; e afirma noutro lugar que todo o pecado de malícia é pecado contra o Espírito Santo. Ora, da boca do Senhor sabemos que o pecado contra o Espírito Santo não será perdoado, nem na vida presente, nem na futura; quer dizer, um tal pecado será de mui difícil perdão, por causa da cegueira que o pecado de malícia traz consigo.
 Pregado na cruz, rogou o nosso Salvador pelos seus perseguidores: Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem. Mas esta oração não aproveitou para os maus padres; foi antes a sua sentença de condenação, porque os padres sabem o que fazem. Nas suas lamentações, exclamava Jeremias: Como se embaciou o ouro, como perdeu o seu brilho? Esse ouro embaciado é precisamente, diz o cardeal Hugues, o sacerdote pecador, que devia luzir com todo o brilho do amor divino, mas pelo pecado se tornou escuro, horrível, objeto de horror para o próprio inferno, e mais odioso aos olhos de Deus que todos os outros pecadores. Diz S. João Crisóstomo que nunca Deus é tão ofendido como quando os que o ultrajam estão revestidos da dignidade sacerdotal.
 O que agrava a malícia do pecado no padre é a ingratidão de que se torna culpado para com Deus, que o elevou a funções tão sublimes. Santo Tomás ensina que a enormidade do pecado aumenta à medida da ingratidão de quem o comete. Nenhumas ofensas, diz S. Basílio, nos ferem tanto, como as que nos são feitas por nossos amigos e parentes.
 Os padres são chamados por S. Cirilo — Dei intimi familiares. A que dignidade mais alta poderia Deus erguer a um homem, do que fazê-lo sacerdote? Passai revista a todas as honras e dignidades, diz Sto. Efrém, e vereis que não há nenhuma que não seja eclipsada pelo sacerdócio. Que honra maior, que nobreza mais assinalada, que ser constituído vigário de Jesus Cristo, seu coadjutor, santificador das almas e ministro dos sacramentos?Dispensadores regiae domus: é assim que S. Próspero chama aos padres. Escolheu o Senhor o padre do meio de tantos outros homens, para ser ministro seu, e para lhe oferecer em sacrifício o seu próprio Filho. Escolheu-o entre todos os homens viadores para oferecer o sacrifício a Deus. Deu-lhe poder sobre o corpo de Jesus Cristo; depôs nas suas mãos as chaves do Paraíso; elevou-o acima de todos os reis da terra e de todos os anjos do Céu; numa palavra, fê-lo um Deus na terra.
 Que mais poderia eu fazer à minha vinha que não tenha feito? Não parece que estas palavras são dirigidas unicamente ao padre? Depois disso, que monstruosa ingratidão, quando esse padre, tão amado de Deus, o ofende na sua própria casa, como o mesmo Deus se lamenta pela boca de Jeremias. A este pensamento, exclama S. Bernardo com gemidos: Ai, Senhor, os que têm a vanguarda na vossa Igreja são os primeiros a perseguir-vos! Ao que parece, é ainda dos maus padres que se queixa o Senhor, quando convida o Céu e a terra para testemunhas da ingratidão, que os seus filhos usam com ele: Ó céus, escutai, ó terra, presta ouvidos... criei filhos, cumulei-os de honras, e eles desprezaram-me! De fato, que filhos poderiam ser esses senão os padres, que Deus elevou a tão alta dignidade, e com a sua carne alimentou à sua mesa, e que depois ousaram desprezar o seu amor e a sua graça? É ainda desta ingratidão que se lamenta quando diz pela boca de Davi: Se o meu inimigo tivesse falado mal de mim, eu o teria sofrido... mas tu que eras como que metade da minha alma, tu, um dos chefes do meu povo, meu amigo íntimo, que partilhavas das delícias da minha mesa! Sim, o Salvador parece dizer: se um inimigo, quer dizer um idólatra, um herege, um mundano, me ofendesse, eu o suportaria, mas como poder sofrer que me ultrajes tu, sacerdote, meu amigo, meu comensal?
 É o que Jeremias deplora igualmente, exclamando: Os que se alimentavam delicadamente... que se tinham nutrido na púrpura, abraçaram a podridão. Que miséria, que horror, diz o Profeta! O que se alimentava duma iguaria celeste e se revestia de púrpura261, ei-lo coberto com os andrajos do pecado, a nutrir-se de lodo e estrume!

II - Castigo dos pecados do padre

 Consideremos agora o castigo, que tem de ser proporcionado à gravidade do seu pecado.S. João Crisóstomo tem por condenado o padre que no tempo do seu sacerdócio comete um só pecado mortal: Se pecardes como particular, será menor o vosso castigo; se pecais no sacerdócio, estais perdido. São em verdade terríveis as ameaças, que o Senhor profere pela boca de Jeremias contra os padres que pecam: Estão manchados o profeta e o sacerdote, e eu encontrei na minha casa a iniqüidade deles, diz o Senhor. Por isso o seu caminho será como um atalho escorregadio e coberto de trevas; hão de impeli-los e cairão. Que esperança de vida poderíeis dar a quem caminhasse à borda dum precipício, em terreno escorregadio e às escuras, sem ver onde punha os pés, e ao mesmo tempo impelido fortemente para o abismo por seus inimigos? Tal é o estado desgraçado a que se encontra reduzido o padre que comete um pecado mortal.
 Lubricum in tenebris. Pecando, o padre perde a luz e cai nas trevas. Mais lhes valera, assegura S. Pedro, não ter conhecido o caminho da justiça, do que voltar atrás depois de o haver conhecido. Ó, sem dúvida, mais valia para um padre que peca ser antes um camponês ignorante, que nunca tivesse estudado coisa alguma; porque depois de tantos conhecimentos adquiridos, — pelos livros que leu, pelos oradores sagrados que ouviu, pelos diretores que teve — depois de tantas luzes recebidas de Deus, o desgraçado calca aos pés todas as graças, pecando, e merece que as luzes recebidas só sirvam para o tornar mais cego e impenitente. A maior ciência, diz S.Crisóstomo, dá lugar a mais severo castigo; se o pastor cometer os mesmos pecados que as suas ovelhas, não receberá o mesmo castigo, mas uma pena muito mais dura265. Um padre cometerá o mesmo pecado que os seculares; mas sofrerá um castigo muito maior, permanecerá mais profundamente cego que todos os outros; será punido conforme o anúncio do Profeta: Que vendo não o vejam, e ouvindo não compreendam!266
 É o que a experiência deixa ver, diz o autor da Obra imperfeita: Um secular, depois de pecar, facilmente se arrepende. Se assiste a uma missão, se ouve um sermão enérgico sobre alguma verdade eterna, — malícia do pecado, certeza da morte, rigor do juízo de Deus, penas do inferno, entra facilmente em si e volta-se para Deus; porque estas verdades, como coisas novas, tocam-no e penetram-no de temor. Mas quando um padre há calcado aos pés a graça de Deus, com todas as luzes e conhecimentos recebidos, — que impressão podem fazer ainda nele as verdades eternas e as ameaças das divinas Escrituras? Tudo quanto encerra a Escritura, continua o mesmo autor, é para ele uma coisa sediça de pouco valor; porque as coisas mais terríveis que lá se encontram, por muito lidas, já lhe não fazem impressão. Donde conclui que nada mais impossível que a emenda de quem sabe tudo e peca.
 Quanto maior é a dignidade dos padres, diz S. Jerônimo, tanto maior é a sua ruína, se num tal estado chegam a abandonar a Deus. Quanto mais alto é o posto em que Deus os colocou, diz S. Bernardo, tanto mais funesta será a sua queda. Quando se cai em plano, diz Sto Ambrósio, raro se experimenta grande mal; mas cair de alto não é só cair, é precipitar-se, e a queda será mortal.
 Nós os padres regozijamo-nos, diz S. Jerônimo, por nos vermos erguidos a tão alta dignidade; mas seja igual o nosso temor de cair. Parece que é aos padres que Deus fala, quando diz pela boca de Ezequiel: Coloquei-vos sobre o monte santo de Deus... e vós pecastes; e eu vos expulsei do monte de Deus, e vos entreguei à ruína. Vós que sois padres, diz o Senhor, eu vos estabeleci sobre a montanha santa, para serdes os faróis do universo: Sois vós a luz do mundo. Uma cidade assente no cimo duma montanha não pode estar escondida.
 Tem pois razão S. Lourenço Justiniano em dizer que quanto maior é graça concedida por Deus aos padres, tanto mais digno de castigo é o seu pecado, e quanto mais alto o seu estado, mais mortal a sua queda. Quem cai num rio, diz Pedro de Blois, mergulha tanto mais fundo, quanto de mais alto tiver caído.
 Compreende bem, ó padre: Deus, elevando-te ao sacerdócio, ergueu-te até ao Céu, e fez de ti, não mais um homem da terra, mas um homem celeste, pensa pois quanto te será funesta uma queda, segundo o aviso de S. Pedro Crisólogo. A tua queda, diz S. Bernardo, será semelhante à do raio que se precipita com impetuosidade. Quer dizer que a tua perda será irreparável. Assim, ó desgraçado, cairá sobre ti a ameaça que o Senhor lançou sobre Cafarnaum: E tu, ó Cafarnaum, erguida até ao Céu, serás abatida até ao inferno.
 Um padre que peca merece tal castigo, por causa da sua ingratidão para com Deus, a quem deve um reconhecimento tanto maior quanto recebeu dele os maiores benefícios, como nota S. Gregório. Merece o ingrato ser privado de todos os bens que recebera, como observa um sábio autor.
 Jesus Cristo disse: Ao que já possui, dar-se-á, e ele estará na abundância; mas o que nada possui, ver-se-á despojado até do que parecia ter. Quem é grato para com Deus obterá maior abundância de graças; mas um padre que, depois de tantas luzes, depois de tantas comunhões, volta as costas a Deus, e desprezando todos os favores recebidos, renuncia à sua graça, — este padre será com justiça privado de tudo. É o Senhor liberal com todas as suas criaturas, mas nunca com os ingratos. A ingratidão, diz S. Bernardo, faz estancar a fonte da bondade divina.
 Por isso S. Jerônimo pôde dizer: Nenhuma besta há no mundo mais feroz que um mau padre, porque esse não se quer deixar corrigir. E o autor da Obra imperfeita: Os leigos facilmente se emendam, mas um mau eclesiástico é incorrigível. Segundo S. Damião, é de preferência aos padres pecadores que se aplicam estas palavras do Apóstolo: Porque os que foram alumiados, os que saborearam o dom celeste, e receberam o Espírito Santo...depois caíram, é impossível que se renovem pela penitência. Com efeito, quem mais que o padre recebeu de Deus graças abundantes? Quem mais do que ele gozou dos favores do Céu e participou dos dons do Espírito Santo? Segundo Sto. Tomás, permaneceram obstinados no pecado os anjos rebeldes, porque pecaram em face da luz; é assim, escreve S. Bernardo, que o padre será tratado por Deus: tornado anjo do Senhor, ou há de ser eleito como anjo, ou réprobo como o anjo. Eis o que o Senhor revelou a Sta.Brígida: Olho os pagãos e os judeus, mas não vejo ninguém pior que os padres: o seu pecado é como o que precipitou Lúcifer. E notemos aqui o que diz Inocêncio III: Muitas coisas que nos leigos são pecados veniais, nos eclesiásticos são mortais.
 É ainda aos padres que se aplicam estas palavras de S. Paulo: Uma terra, que, depois de muito regada pelas chuvas, só produz espinhos e silvas, está reprovada e sujeita a maldição: acabará por ser entregue ao fogo.Que chuva de graças não recebe de Deus continuamente o padre? E contudo, em vez de frutos, só produz silvas e espinhos: Desgraçado! Está prestes a ser reprovado e a receber a maldição final, para ir, depois de tantas graças, que Deus lhe prodigalizou, arder no fogo do inferno!
 — Mas, que temor pode ter ainda do fogo do inferno um padre, que voltou as costas a Deus? Os padres que pecam perdem a luz, como levamos dito, e perdem também o temor de Deus. É o Senhor quem no-lo declara: Se eu sou o Senhor, onde está o meu temor, vos diz o Senhor, a vós, ó padres, que desprezais o meu nome? Segundo S. Bernardo, os sacerdotes, caindo da altura a que se acham elevados, de tal modo se afundam na malícia, que perdem a lembrança de Deus, e tornam-se surdos a todas as ameaças da justiça divina, a tal ponto que nem o perigo da sua condenação os espanta.
 Mas que haverá nisso de admirável? O padre, pecando, cai no fundo do abismo, onde fica privada da luz e despreza tudo. Acontece então o que diz o Sábio: Caído no fundo do abismo do pecado, o ímpio despreza. Este ímpio é o padre que peca por malícia; um só pecado mortal o precipita no fundo das misérias, em que cegamente permanece mergulhado. Nesse estado despreza tudo: castigos, advertências, presença de Jesus Cristo, a quem toca no altar. Não córa de se tornar pior que o traidor Judas, como o próprio Senhor um dia disse a Sta. Brígida: Tais padres já não são sacerdotes meus, mas verdadeiros traidores. Sim, tais padres são verdadeiros traidores, porque abusam da celebração da Missa, para ultrajarem mais cruelmente a Jesus Cristo pelo sacrílego!
 E qual será, depois de tudo, o triste fim do padre mau? Ei-lo: Praticou a iniqüidade na terra dos santos, não verá a glória do Senhor. Será, numa palavra, o abandono de Deus, e depois o inferno. — Mas, dirá alguém, essa linguagem é demasiado aterradora: quereis lançar-nos da desesperação?
 — Respondo com Sto. Agostinho: Se vos espanto, “é que eu próprio estou espantado”.
 — Assim, dirá um padre, que tiver tido a desgraça de ofender a Deus no sacerdócio, não haverá para mim esperança de perdão?
 — Ó, não posso afirmar isso; haverá esperanças, desde que haja arrependimento do mal cometido. Que esse padre seja pois extremamente reconhecido para com o Senhor, se ainda se vê ajudado da graça; mas é preciso que se apresse a dar-se a Deus, enquanto o chama, conforme o aviso de Sto. Agostinho: “Abramos os ouvidos à voz de Deus, enquanto nos chama, com receio de que se recuse a ouvir-nos, quando estiver prestes a julgar-nos”.

III - Exortação

 Ó padres, irmãos meus! Saibamos de futuro apreciar a nossa dignidade; e, ministros de Deus, envergonhemo-nos da escravidão do pecado e do demônio, como diz S. Pedro Damião: “Deve o padre ter sentimentos nobres e, como ministro do Senhor, corar de se fazer escravo do pecado”. Não imitemos a loucura dos mundanos que só pensam no presente. Está decretado que os homens morrem uma vez, e depois da morte segue-se o juízo.
 Todos havemos de comparecer no tribunal de Jesus Cristo, para cada um receber o salário dos trabalhos desta vida. Ali nos será dito: Dá conta da tua administração302. Dá-me conta do teu sacerdócio: como o exerceste? A que fim o fizeste servir?
 — Meu caro irmão, se tivesses de ser julgado neste momento, estarias contente? Ou antes, não dirias: Quando ele me interrogar, que lhe responderei?
 Quando Deus quer castigar um povo, começa o castigo pelos padres, porque são eles a causa primária dos pecados do povo, quer pelos seus maus exemplos, quer pela sua negligência em cultivarem a vinha confiada aos seus cuidados. Por isso o Senhor diz então: Eis o tempo em que o juízo vai começar pela casa de Deus. No morticínio descrito por Ezequiel, quis Deus que os padres fossem as primeiras vítimas: Começai pelo meu santuário. E noutro lugar, lê-se: Um juízo rigorosíssimo está reservado para os que se acham à frente do povo. A quem recebeu muito, será exigido muito.
 Diz o autor da Obra imperfeita: Há de ver-se no dia do juízo o padre pregador despojado da sua dignidade, e arrojado para o meio dos infiéis e hipócritas, e dada a um leigo a estola que lhe era destinada. Eis o que todo o padre deve meditar bem: Escutai isto, ó sacerdotes... porque é do vosso julgamento que se trata.
 E, como o juízo dos padres é o mais rigoroso, também a sua condenação será mais terrível: Esmagai-os com uma violência extrema. Um concílio de Paris, repete estas palavras de S. Jerônimo: “Grande é a ruína deles, se vierem a cair em pecado”. Sim, diz S. João Crisóstomo, se o padre cometer os mesmos pecados que as suas ovelhas, sofrerá, não a mesma pena, mas uma pena muito mais severa. Foi revelado a Sta. Brígida que os sacerdotes pecadores são mergulhados num inferno mais profundo que o dos demônios. Ó, que festa para os demônios, quando um padre réprobo descer ao meio deles! Todo o inferno se põe em movimento para ir ao encontro dele, como diz Isaías. Todos os príncipes dessa terra de misérias se levantarão para darem ao padre condenado o primeiro lugar nos tormentos: Todos, ajunta o profeta, te receberão com estas palavras: Então cá estás tu também, condenado como nós e tornado semelhante a nós. Ó padre, houve tempo em que mandaste sobre nós com império; fizeste descer muitas vezes o Verbo encarnado sobre os altares, arrancaste ao inferno muitas almas e agora eis-te semelhante a nós, desgraçado e atormentado como nós!
 Foi o teu orgulho que te fez desprezar a Deus e ao teu próximo, até por fim te precipitar aqui. Visto que és rei, fica-te bem a cama real e a púrpura conveniente à tua dignidade; pois bem, aí está o fogo, aí estão os vermes, que te hão de devorar eternamente o corpo e alma. Ó como então os demônios hão de mofar das missas, dos sacramentos e de todas as funções do sacerdote condenado!
 Ó sacerdotes, irmãos meus, tomai cuidado de vós; os demônios têm mais a peito tentar um padre que cem seculares, porque um padre que se condena arrasta com ele uma multidão para o abismo. Diz S. João Crisóstomo: Quem faz perecer o pastor, em breve faz dispersar todo o rebanho320. E com não menos razão diz outro autor: Na guerra procuram os inimigos primeiro que tudo matar os chefes.
 S. Jerônimo ajunta: Não procura tanto o demônio os infiéis, nem os que estão fora do santuário; é na Igreja de Jesus Cristo que gosta de fazer os seus latrocínios; estão ali, segundo Habacuc, as suas iguarias de predileção.Não há iguarias mais apetitosas para o demônio, que as almas dos eclesiásticos.
 (O que se segue pode servir para excitar a compunção no ato de contrição). Sacerdote de Jesus Cristo, imagina que o Senhor te fala da maneira mais tocante, como ao povo judeu: Dize-me que mal te fiz, ou antes que bem tenho deixado de te fazer? Tirei-te do meio do mundo, e escolhi-te entre tantos seculares, para te fazer meu sacerdote, meu ministro, meu amigo. E tu, por um interesse miserável, por um vil prazer, de novo me pregaste na cruz!
 Pela minha parte, todas as manhãs, no deserto desta vida, te tenho saciado com o maná celeste, isto é, com a minha carne divina e com o seu sangue. E tu tens-me esbofeteado, flagelado por tuas palavras e ações imodestas. Escolhi-te como um vinho que devia fazer as minhas delícias; por isso infundi na tua alma tantas luzes e graças, para que produzisses frutos doces e preciosos; e tu só me tens dado frutos amargos. Fiz-te rei, elevei-te mesmo acima de todos os reis da terra. E tu coroaste-me de espinhos, com os teus maus pensamentos consentidos.
 Cheguei a fazer-te meu vigário, a entregar-te as chaves do Céu, a fazerte um Deus da terra! E tudo desprezaste as minhas graças, a minha amizade; crucificaste-me de novo etc.

(A Selva, Primeira Parte - Materiais para Sermões, Santo Afonso Maria de Ligório)

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