O discurso
de Bento XVI para a apresentação dos bons votos de Natal à Cúria é um exemplo
perfeito de estilo ratzingeriano. Juntamente com as notas mais propriamente
religiosas – como o convite a seguir Jesus que diz «vinde ver» dirigido a
todos, interiormente, está a percorrer uma busca e um caminho rumo ao Senhor –
grande parte do texto é dedicado a temas relativos à sociedade em geral, e os
assuntos usados são razoáveis, válidos para todos, crentes e não-crentes.
Trata-se sobretudo dos temas que dizem respeito à questão da família que, na
realidade, não é só «uma forma social específica», mas «a questão do próprio
homem».
Com efeito, as transformações que a sociedade pós-moderna está a
realizar nos relacionamentos entre as pessoas, especialmente na família, não
são apenas alargamentos dos direitos, ampliações no âmbito da liberdade de
escolha, mas uma ferida para as dimensões essenciais da experiência humana.
Porque o que está em questão, quando se fala de matrimónios homossexuais, ou da
eliminação da diferença entre os sexos com a imposição da categoria do gender,
é a visão do ser humano, o conceito global de humanidade. E o Papa intervém
sobre estes temas, guiando a Igreja a tomar posições claras, corajosas e
comprometidas a nível intelectual, profundamente consciente do facto que «quem
defende Deus defende o homem».
Bento XVI, mais do que qualquer outro
Pontífice da modernidade, sabe bem que é necessário também travar uma batalha
intelectual para defender uma ideia do ser humano que corresponda à realidade,
à verdade, e que esta luta deve ser apoiada juntamente com todos os aliados
possíveis. E os aliados existem: muitos intelectuais leigos, mas também
representantes de outras religiões com os quais o diálogo – acrescenta mais uma
vez o Papa – deve iniciar precisamente a partir das questões culturais, e não
das diferenças teológicas insolúveis.
Trata-se, por conseguinte, de um
diálogo que focaliza o sentido de responsabilidade compartilhado em relação ao
destino da humanidade. Exactamente como o que, com este discurso, Bento XVI
tece com o grão-rabino da França, Gilles Bernheim, autor de uma reflexão sobre
o matrimónio homossexual definida pelo Papa não só boa sob o ponto de vista das
argumentações, que compartilha amplamente, mas até «comovedora». Portanto,
declara-se da sua parte para salvar a humanidade de si mesma, dos perigos que
está a correr seguindo utopias insensatas e perigosas.
Não é a primeira vez que um Pontífice
alerta os contemporâneos sobre os perigos que as ideologias por eles abraçadas
comportam, e que não conseguem ver. É suficiente pensar nas denúncias de Pio XI
em relação à eugenética, na altura apoiada por quase todos os cientistas,
inclusive católicos: denúncias depois confirmadas pelas formas terríveis de
selecção postas em prática, não só por parte do regime nazi.
E como é
possível esquecer as palavras do bispo von Galen contra a operação t4 desejada
por Hitler para exterminar os doentes mentais, com o silêncio de todos os
outros países? E nos anos seguintes as denúncias contra a utopia socialista,
considerada perigosa por Pio XII não só pelos seus aspectos de perseguição
religiosa, mas devido aos efeitos sobre a condição humana.
Trata-se de uma defesa da cultura
humana por aquilo que ela produziu de mais nobre, muitas vezes, mas nem sempre,
graças à inspiração religiosa. Uma defesa que se relaciona com a experiência
iniciada pela Igreja antiga que quis e soube transmitir e conservar a cultura
clássica – embora pagã – para defender as realizações mais importantes do
intelecto humano e oferecer os elementos sobre os quais foi, sucessivamente, construída
a civilização ocidental.
Nesta tradição antiga e nobre
inscreve-se a voz de Bento XVI, que sabe assumir a responsabilidade mais alta:
a de ser a consciência da humanidade, de defender a dignidade do ser humano
como foi criado por Deus à sua imagem e semelhança, restituindo deste modo à
Igreja o seu grande papel cultural e moral. A novidade verdadeira consiste em
reconhecer e valorizar todos os aliados que encontra nesta batalha e orientar
sobre esta novidade o diálogo entre as religiões, porque o Papa Ratzinger sabe
que «estes esforços podem ter também o significado de passos comuns rumo à
única verdade».
Lucetta Scaraffia
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