Felipe de Melo
Certamente este texto parecerá absurdamente estranho para aqueles que estão mais acostumados a ler o blog. Haverá aqueles que torcerão o nariz ao verem uma pretensa análise político-filosófica de um blockbuster hollywoodiano baseado em uma história em quadrinhos, considerando isso ora um arroubo de superficialidade frívola, ora uma tremenda “forçação de barra” que mistura cultura pop com pseudo-intelectualidade conservadora. No entanto, ele se faz bastante necessário, e entenderão aqueles que tenham assistido ao filme e que entendam minimamente de filosofia política.
Muito provavelmente, Christopher Nolan, diretor e co-roteirista da mais recente
trilogia cinematográfica do Homem-Morcego (interpretado por Christian Bale),
jamais teve a pretensão de fazer um filme filosófica e politicamente orientado
sob o disfarce de película de altíssimo apelo comercial. Todavia, fica claro
que Nolan teve o cuidado de tecer uma trama que não fosse superficial ou óbvia:
conflitos e dilemas morais permeiam todo o filme, do início ao fim, e
simbolizam, sob diversos aspectos, o ressurgimento ao qual alude o título.
Acidentalmente (ou não), o enredo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge”
enfoca uma das grandes verdades da história humana: a essência perversa da
mente revolucionária.
O vilão do filme, ao contrário do que possa parecer, não é o impiedoso Bane
(Tom Hardy), ou a fatal Talia al Ghul – disfarçada como a empresária Miranda
Tate (Marion Cotillard) –, mas a crença de que a única alternativa para purgar
a corrupção e a decadência da sociedade atual é reduzi-la a pó de modo a
construir uma nova sociedade, baseada em um novo homem. Esse processo de
“destruição criativa” se dá através da violência tanto física quanto simbólica
e moral: não basta explodir prédios, sequestrar, roubar ou matar, mas é
imprescindível disseminar o caos, solapar as instituições e inocular
profundamente nos indivíduos o veneno revolucionário. O vilão do filme não é feito
de carne, mas de ideias; não é um corpo, mas um espírito: o espírito da
revolução.
Bane e Talia são os líderes da Liga das Sombras, fundada por Ra’s al Ghul (Liam
Neeson). O objetivo principal da Liga das Sombras é combater a “degenerescência
moral” onde estiver, utilizando, para isso, todos os meios disponíveis. Para a
Liga das Sombras, nenhum meio é ilícito ou imoral em si mesmo: o que define sua
ilicitude ou imoralidade são os objetivos que se almeja através de seu uso. Os
membros da Liga são profundamente comprometidos com esse ideal, chegando a
extremos de sacrifício – como o sicário de Bane que, voluntária e alegremente,
permanece no avião da CIA que é derrubado no Uzbequistão, na primeira cena do
filme. O próprio Bane mostra-se o vilão mais perigoso dos três filmes de Batman
justamente por causa de sua obsessão idealista: todos os seus esforços, por
menores que sejam, estão plenamente dirigidos para a concretização do projeto
revolucionário da Liga das Sombras; nenhum de seus movimentos é desperdiçado em
interesses e problemas secundários, pois todo o seu ser está devotado à causa.
Outra característica marcante de Bane é a crença sólida na superioridade moral
sua e de sua causa: a única saída para combater a decadência e as injustiças
presentes na sociedade de Gotham é destruir todos os valores, instituições e
credos “corruptos”. O paciente está doente, mas a cura não reside na escolha do
remédio mais amargo, mas na morte. As cenas de perseguições, assassinatos
públicos, saques e julgamentos sumários são perturbadoramente idênticas àquelas
que foram vistas em todos os processos revolucionários dos últimos 300 anos –
na Revolução Francesa, na Comuna de Paris, na Revolução Bolchevique, e tantas
outras. Lugar simbolicamente poderoso é a “suprema corte” revolucionária –
comandada pelo Dr. Jonathan Crane (Cillian Murphy), mais conhecido como
Espantalho, cuja droga alucinógena criada por si vitimou-o no primeiro filme da
trilogia –, em que, a bem da verdade, os réus eram levados não para serem
julgados, mas apenas para escutarem a sentença e escolherem entre o exílio e a
morte.
O paralelismo entre os processos revolucionários que já atingiram a civilização
ocidental e a hecatombe promovida pela Liga das Sombras no filme “Batman: O
Cavaleiro das Trevas Ressurge” não para por aí. Ao promover a morte e a
destruição no estádio de futebol americano de Gotham, Bane, dirigindo-se à
multidão estarrecida e amedrontada, defende que eles não são novos opressores,
mas libertadores, aqueles que farão com que os cidadãos de Gotham cumpram o
destino ao qual foram chamados e tomem nas próprias mãos as rédeas não só de
suas vidas, mas da vida da própria sociedade. Essa ideia enganosa é reforçada
pela alegação de que o controle da bomba nuclear, que está em posse da Liga das
Sombras, encontra-se nas mãos de uma pessoa comum, alguém “do povo”, e que,
portanto, é o próprio povo que tem o controle sobre a situação. O mesmo
discurso, em essência, tem sido utilizado ad nauseam por todos os líderes
revolucionários que já pisaram e que ainda pisarão sobre a face da terra: a
expropriação, o derramamento de sangue, os expurgos, tudo isso não são métodos
violentos e opressivos para dobrar as pessoas, mas perfazem a libertação de que
elas necessitam.
O terror revolucionário e sua perigosa obsessão pela “destruição criativa” são
mais fortes do que os valores tradicionais sobre os quais a sociedade se erigiu
– e que são representados pelo símbolo que é o Batman? Sim e não. O apelo
sensacionalista e o potencial de deturpação pertencentes àqueles conseguem, num
primeiro momento, grande aceitação junto à massa ignara; é como se, de fato, a
superioridade moral da Liga das Sombras se manifestasse na ausência de amarras
da velha moral e no seu esforço de pulverizar a velha sociedade. No entanto, a
própria situação criada pela Liga das Sombras torna-se, com o passar do tempo,
insustentável; os absurdos brotam, as máscaras caem, as verdadeiras intenções
ficam expostas à incômoda luz da verdade.
Essa exposição, todavia, não acontece por si mesma, não é automática: ela
necessita de agentes, é fruto de um ato positivo da vontade daqueles que sabem
que, a despeito da degenerescência da sociedade, os valores tradicionais sobre
os quais ela foi erigida são verdadeiros e perenes. Batman, por mais que seja um
símbolo da luta pela manutenção desses valores, não é um símbolo que se
sustenta por si mesmo: o comissário James Gordon (Gary Oldman), o detetive John
Blake (Joseph Gordon-Levitt), o cientista Lucius Fox (Morgan Freeman), até
mesmo o mordomo Alfred J. Pennyworth – que, em minha opinião, é o melhor
personagem da trilogia, interpretado brilhantemente por Michael Caine –, bem
como todos aqueles que voluntariamente se dispõem a lutar por esses valores,
unem suas forças não apenas para dar o suporte necessário ao símbolo
representado por Batman, mas também para trazer à luz as sinceras intenções da
revolução.
Por que “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge” é um filme ao qual todo
conservador deve assistir? Porque a sociedade ocidental está passando por um
longo, sutil e aterrador processo revolucionário. Enquanto os líderes dessa
revolução seduzem os incautos com seu afinadíssimo canto de sereia, violências
as mais cruéis são cometidas diuturnamente contra aqueles que decidem ater-se
aos valores tradicionais, relegados a nós há séculos, em nome de um novo mundo,
de uma nova sociedade, enfim, de um novo homem. A soberania nacional dá lugar a
um proto-autoritarismo supranacional, a inversão de valores é
institucionalizada e aplicada com todo o rigor da lei, a objetividade da lei
moral é substituída pelo subjetivismo discricionário, e, pouco a pouco,
caminhamos rumo ao caos que, benevolamente, os revolucionários creem ser a
“destruição criativa” necessária à fundação de um novo mundo.
As lições de determinação, firmeza, lealdade e honra de “Batman: O Cavaleiro
das Trevas Ressurge” são inspiradoras para os poucos que ainda ousam resistir a
esse mundo em colapso. E, certamente, a lição mais importante é: combater o
espírito revolucionário é uma tarefa à qual devem se dedicar todos os que
optaram pelos valores tradicionais. Nunca é demais lembrar que, em uma situação
de guerra – exatamente o que estamos vivendo –, só há dois caminhos a se
trilhar: o de vítimas indefesas ou de combatentes resolutos. Os valores que nos
deram a vida que temos merecem que nos dediquemos à sua preservação, ainda que
isso custe nossas próprias vidas. Não é uma decisão fácil, mas é
inelutavelmente necessária. Não devemos fazê-lo apenas por nós mesmos: devemos
fazê-lo por aqueles que deram seu sangue para que cheguemos até aqui, honrando
sua memória e sua luta, e por aqueles que ainda virão, de modo que o mundo que
herdem de nós seja menos perigoso, menos venenoso e mais afastado de diabólicos
anseios revolucionários.
Mas o Batman não é o cavaleiro das trevas? Veste negro e tem como protótipo o morcego, mamífero noturna e associada ao demônio quer tem asas de morcego nas representações dele?
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