Seja
feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu
43. — O
Espírito Santo produz em vós um terceiro dom, chamado dom de Ciência. O
Espírito Santo não produz nos bons somente o dom do Temor e o dom da Piedade
que, como vimos atrás (n°34), é um amor delicado por Deus. O Espírito Santo
torna o homem sábio. Davi pedia o dom da ciência no Salmo 118, 66, dizendo:
Ensinai-me a bondade, a doutrina e a ciência. E é esta ciência do bem viver,
que nos ensina o Espírito Santo.
Entre as
disposições que contribuem para a ciência e a sabedoria do homem, a mais
importante é aquela que faz com que o homem não se apóie em si mesmo. Não te
estribes em tua prudência, recomenda o livro dos Provérbios (3, 5). Com efeito,
os que confiam em seu próprio julgamento, a ponto de não se fiarem senão em si
mesmos e não nos outros,
são considerados como insensatos, e verdadeiramente o são. Declara o
livro dos Provérbios (26, 12): Mais se deve esperar de um ignorante do que de
um homem que é sábio a seus próprios olhos.
Um homem
não confia em seu próprio julgamento se é humilde, pois, ensinam os Provérbios
(11, 2): onde há humildade, aí há igualmente sabedoria. Os orgulhosos ao
contrário, põem em si toda confiança.
44. — Assim
sendo, o Espírito Santo nos ensina, pelo dom de Ciência, a não fazer a nossa
vontade, mas a vontade de Deus. E também quando pedimos a Deus, que Sua vontade
se faça no céu, como na terra, manifesta-se O dom de Ciência. Quando dizemos a
Deus: Seja feita a vossa vontade, é como se fôssemos doentes que aceitam o remédio amargo,
prescrito pelo médico. O doente não quer tal remédio, mas aceita a vontade do médico,
do contrário, seguindo só sua vontade, seria um insensato.
Da mesma
maneira, não devemos pedir a Deus nada além do Seu querer, isto é, a realização
de Sua vontade em nós. O coração do homem é reto, quando está de acordo com a
vontade divina, assim como fez o Cristo: (Jo 6, 38): Desci do céu, não para fazer
a minha vontade, mas a vontade d' Aquele que me enviou.Cristo, enquanto Deus,
tem uma só vontade com o Pai, mas enquanto homem tem sua vontade distinta da vontade
do Pai.Foi falando desta vontade que declarou: não faço a minha vontade, mas a
de meu Pai.E por isso nos ensinou a rezar
e a pedir: «seja feita a vossa vontade».
45. — Mas
qual é a razão de ser desta oração: «Seja feita a vossa vontade?» Não se diz a
Deus, no Salmo 113 (v. 3): Tudo quanto quis, fez? Se Deus faz tudo que quer no
céu e na terra, porque diz Jesus: Seja feita a vossa vontade assim na terra
como no céu?
46. — Para
compreender a causa deste pedido é preciso saber que Deus quer para nós três
coisas que realizamos nesta oração.
a) Em primeiro
lugar, Deus quer que tenhamos a vida eterna. Quando alguém faz alguma coisa
visando um determinado fim, quer que ela atinja tal fim. Ora, Deus não fez o
homem sem um fim determinado. Diz o Salmo (88, 48): acaso criastes em vão todos
os filhos dos homens? Deus criou os homens, para um fim que não são as volúpias,
pois estas também as têm os animais. Deus quis que o homem alcançasse a vida
eterna. (cf. Jo. 3, 16; 10, 10).
47. —
Quando alguma coisa atinge o fim para que foi feita, diz-se que está salva;
quando não atinge, diz-se que está perdida. Ora, o homem é feito por Deus para
a vida eterna. Quando ele chega lá, está salvo; e esta é a vontade de Deus para
ele. Esta é a vontade do Pai que me enviou: que o que vir o Filho e crer nele,
tenha a vida eterna. (Jo 6, 40).
Esta
vontade já se cumpriu nos anjos e santos, que vivem na pátria celeste, pois
vêem a Deus, o conhecem e gozam dele. Mas nós desejamos que, assim como a
vontade de Deus se cumpre nos Bem-aventurados que estão no céu, se cumpra também
em nós que estamos na terra. Por isso pedimos na oração: «Seja feita a vossa vontade»
em nós, que estamos na terra, como nos Santos, que estão no céu.
48. — b)
Quanto a nós, Sua vontade é que cumpramos Seus mandamentos. Quando alguém
deseja um bem, quer não só este bem, como os meios para obtê-lo.Também o
médico, para conseguir a saúde do doente, quer a dieta, os remédios e outras
coisas desse gênero.
Ora, Deus
quer que tenhamos a vida eterna. Ao moço que lhe pergunta: Que devo fazer de
bom para ter a vida eterna?Jesus responde: Se queres entrar na vida eterna,
guarda os mandamentos (Mt 19, 17).
São Paulo
escreve, a esse propósito, aos Romanos (12, 19): E não vos conformeis com este mundo,
mas reformai-vos com um espírito novo, para que experimenteis qual é a vontade
de Deus, boa, agradável e perfeita.
A vontade
de Deus é boa porque é útil. Sou o Senhor teu Deus, que te ensina o que é útil.
(ls 48, 17). É agradável para aqueles que a amam. Se a vontade de Deus não é grata
aos que não a amam, para os que a amam é deliciosa. A luz para os justos, a
alegria para os retos de coração, diz o Salmista (Sl 96, 11 ).
A vontade
de Deus é também perfeita, porque é uma bondade superior a tudo. Sede
perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito, prescrevia Jesus (Mt 5, 48). Assim,
quando dizemos, «Seja feita a vossa vontade», pedimos a graça de observar os
mandamentos de Deus.Ora, a vontade de Deus se cumpre nos justos, mas ainda não
nos pecadores. Os justos são designados pelo céu e os pecadores pela terra.
Pedimos,
pois que a vontade de Deus seja feita na terra, isto é nos pecadores, como é
feita no céu, nos justos.
49. —
Notemos que Jesus, com o próprio modo de formular o terceiro pedido do «Pai
nosso» nos dá um ensinamento:
Jesus não
nos faz dizer a nosso Pai: «fazei a vossa vontade», nem tão pouco, «que nós
façamos a vossa vontade», mas sim: «Seja feita a vossa vontade». Com efeito,
duas coisas são necessárias para alcançarmos a vida eterna: a graça de Deus e a
vontade do homem. Apesar de Deus ter criado o homem sem chamá-lo a cooperar na criação,
não o justifica, no entanto, sem a cooperação dele. «Aquele que te criou sem
ti, não te justificará sem ti» diz Santo Agostinho, em seu comentário sobre São
João. Realmente, Deus quer esta cooperação do homem. Convertei-vos a mim, e eu
me converterei a vós, diz Ele em Zacarias (1,3); e São Paulo escreveu: (1 Cor
15, 10) Pela graça de Deus sou o que sou e sua graça não tem sido vã em mim.
Não sejais presumidos, mas confiai na graça de Deus; não negligencieis
o vosso esforço, mas trazei vossa cooperação. É por isso que Jesus não nos
manda dizer «que nós façamos a vossa vontade», do contrário pareceria que a
graça de Deus não tem nada para fazer. Também não prescreve «Fazei a vossa
vontade», senão pareceria que nossa vontade e nosso esforço não servem para
nada.
Mas Jesus
nos faz dizer: Seja feita a vossa vontade, pela graça de Deus, à qual juntamos
nosso trabalho e nosso esforço.
50. — c) em
terceiro lugar, Deus quer que sejamos restabelecidos no estado e na dignidade
em que foi criado o primeiro homem. Dignidade e estado tão elevados que seu
espírito e sua alma não sentiam qualquer oposição da parte da carne e da
sensibilidade.
Enquanto a
alma foi submissa a Deus, a carne foi submissa ao espírito e tão perfeitamente
que não experimentou nem a corrupção da morte nem a alteração da doença e das
outras paixões. Mas a partir do momento em que o espírito e a alma, que estavam
entre Deus e a carne, se rebelaram contra Deus, pelo pecado, também o corpo se
rebelou contra a alma e começou a ter doenças e a morrer, e sua sensibilidade
continuamente se revoltou contra o espírito. O que faz com que São Paulo diga:
(Rm 7,23). Sinto nos meus membros uma outra lei, que repugna à lei do meu
espírito. E (Gl 5, 17) A carne tem desejos contra o espírito e o espírito
contra a carne. Assim há uma guerra incessante entre o espírito e a carne; o homem
torna-se cada vez pior pelo pecado.
Deus quer que
o homem seja restabelecido em seu primeiro estado, isto é, que não haja nada na
carne que se oponha a seu espírito; o que São Paulo exprime assim (1 Ts 4, 3):
Pois é essa a vontade de Deus: a vossa santificação.
51. — Ora,
esta vontade de Deus, quanto ao nosso corpo, não pode realizar-se nesta vida.
Ela se realizará na ressurreição dos santos, quando seus corpos ressuscitarão gloriosos, incorruptíveis e esplêndidos,
segundo a palavra do Apóstolo (1 Cor 15,43): Semeia-se na vileza, mas o corpo
ressuscitará na glória.
No entanto
a vontade de Deus se realiza aqui em baixo, no espírito dos justos, por sua
justiça, ciência e vida. Assim, quando dizemos:
«Seja feita
a vossa vontade», pedimos ao Senhor que realize sua vontade também em nossa
carne. Segundo esta explicação, no pedido, «Seja feita a vossa vontade, assim
na terra, como no céu», a Palavra céu designa nosso espírito e a palavra terra
designa nossa carne.E o sentido deste pedido será: que vossa vontade seja feita
na terra, isto é, em nossa carne, como é feita no céu, isto é, em nosso
espírito, pela justiça.
52. — Este
terceiro pedido nos faz chegar à bem-aventurança das lágrimas, que o Senhor nos
fez conhecer no Sermão da Montanha (Mt 5, 5): Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados. É Fácil de mostrá-la retomando os três pontos de nossa
explicação.
Primeiramente,
Deus quer para nós e nos faz desejar a vida eterna. Por esse amor à vida
eterna, somos levados a derramar lágrimas. Ai de mim, canta o salmista, como é
longo o meu exílio!(Sl 119,5). E esse desejo de vida eterna, entre os santos, é
tão forte que os faz aspirar à morte, se bem que, em si mesma, ela seja objeto
de aversão. Nós preferimos deixar este corpo e estar presentes no Senhor (2 Cor
5,8).
Em segundo
lugar, os que guardam os mandamentos de Deus, para obedecer à vontade de Deus,
estão também na aflição, porque, se os preceitos são doces para a alma, são
amargos para a carne, pois a mortificam. Falando da carne,e também de suas almas,o
Salmista diz dos justos (Sl 125, 5): Semearam em lágrimas, com alegria ceifarão.
Em terceiro
lugar, falamos da luta incessante entre nossa carne e nosso espírito. Luta essa
que é, igualmente, objeto de nossas lágrimas. É impossível que neste combate a
alma não receba alguns erimentos da parte da carne, ao menos os dos pecados
veniais. A obrigação de expiar estas faltas é razão de lágrimas. Salmo
6,7: Todas as noites, isto é, na
obscuridade de meus pecados, regarei o meu leito, isto é minha consciência. Os
que choram assim, alcançarão a pátria. Que Deus se digne de nos conduzira ela.
Fonte:
Sermões de São Tomás de Aquino, Edição Eletrônica Permanência, 2003
Saiba mais:
Sermões de São Tomás de Aquino – A Oração Dominical Parte 7 (Perdoai as nossas dividas, assim como perdoamos os nossos devedores)
Sermões de São Tomás de Aquino - A Oração Dominical Parte 8 (E não nos deixeis cair em tentação)
Sermões de São Tomás de Aquino - A Oração Dominical Parte 9 - Final (Mas livrai-nos do mal. Amém)
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